Texto resenhado
por Silvânia Araújo, acadêmica do curso de Doutorado do Programa de
Pós-graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba.
WOLF, Eric R. Sociedades camponesas. 2 ed. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1976.¹
Eric Wolf
apresenta, em uma perspectiva antropológica, a questão camponesa a partir dos
problemas e aspectos econômicos de sua formação e organização histórica. As
comunidades camponesas seriam, para Wolf (1976), o resultado do aparecimento da
civilização no lugar das sociedades primitivas, e o marco da
civilização seria definido, justamente, pelo aparecimento e desenvolvimento de
uma ordem social complexa, “baseada na divisão social e de poder assimétrica entre
os que governam e os que cultivam”. O camponês sempre existe dentro de um sistema maior, no qual está em posição
subalterna, apesar de ter acesso à
terra e, através dela, conseguir
um grau importante de autonomia.
Assim, no
primeiro capítulo do texto, Wolf (1976) inicia sua discussão com a diferenciação
entre o camponês e o
“cultivador primitivo”. Para ele,
enquanto este último realiza a troca dos excedentes diretamente no seu
grupo social (relação simétrica), o camponês transfere seus produtos ou
excedentes para as mãos de um grupo dominante (não simétrica). A seguir, situa
o surgimento da agricultura na Ásia, como processo civilizatório (mais ou
menos, 9 mil anos a. C. segundo dados arqueológicos). No México, por
volta de 7 mil a.C. e de maneira plenamente estabelecida em torno de 1500 a.C.,
onde se deu uma diferenciação na divisão funcional do trabalho.
O autor
estabelece os conceitos de “mínimo calórico” e “excedente” para determinar o
quanto de produção é necessário para a manutenção da vida do cultivador rural e
a parte da produção que é efetivamente transferida. Separa dessa produção o que
seria o “fundo de manutenção”, das partes que teriam uma função social como o
fundo cerimonial, o custo relativo às participações sociais; o fundo de
aluguel, para o resgate de dívidas com alguém que exerça um poder superior e, por
fim, o fundo de poder, que é a parte apropriada pelos dominadores.
Wolf (1976)
também mostra, utilizando-se de diferentes situações geográficas, o papel das cidades relacionado à crescente complexidade
social e a relação das comunidades camponesas com os centros urbanos em
diferentes momentos da história e o Estado como forma constituinte da
civilização. Somente nesse momento, a partir de relações exteriores a seu
extrato social, segundo ele, o camponês
assume um papel na relação com os detentores do poder.
Apresenta o
lugar do campesinato como espaço produtor de reservas de riquezas e a posterior
perda de importância em função da revolução industrial. Dessa forma, descreve o
“dilema camponês”, ou seja, a necessidade de produzir o mínimo calórico, o fundo
de manutenção e os fundos cerimoniais em contraposição às demandas externas e limitações
com o tamanho da terra e força de trabalho. Nesse ponto, o autor apresenta as teses
de Chayanov para justificar a lógica campesina de trabalhar apenas no limite da
satisfação do consumo familiar. Para
Wolf (1976), portanto, estas características econômicas são também definidoras
do campesinato, as quais podem ser relacionadas às diferentes dimensões
contidas na noção de território:
• A unidade camponesa de
produção orienta-se na busca de
garantir produção visando a:
a. um fundo de manutenção: o autoconsumo que
propicia o mínimo calórico para a família, a produção de sementes para a
próxima safra, a alimentação animal e o reparo de suas ferramentas e
instalações – está relacionado à dimensão
material do território;
b. um fundo
cerimonial que pretende a reprodução
social e cultural do grupo familiar e
comunitário ao qual pertence – está
relacionado à dimensão simbólica do território;
c. um fundo
de aluguel objetivando atender
exigências que não vieram de seu trabalho na terra e sim, do atendimento a setores dominantes da
sociedade que se apropriam dos
excedentes produzidos pelas unidades camponesas – está relacionado à dimensão das relações de poder que
envolvem o território (acesso, domínio e uso).
• A unidade
camponesa é tanto uma unidade econômica
como um lar – articulação entre
trabalho, produção e consumo (culturalmente definido)
– e suas despesas não são
ditadas diretamente pela existência de
um sistema econômico, governado por preços e lucros.
No segundo capítulo
do texto, Wolf (1976) aborda os aspectos econômicos do campesinato,
apresentando alguns sistemas utilizados para extrair o
sustento e os excedentes, os
“ecótipos camponeses”. Para ele, “ecótipo” seria o sistema de transferência de
energia do meio ambiente para o homem. O autor divide os ecótipos em “paleotécnicos”
(primitivos da primeira revolução agrícola – força de trabalho humana e animal)
e o “neotécnico” (com a utilização de
máquinas e implementos gerados pós- revolução industrial).
No ecótipo
paleotécnico, Wolf (1976) descreve
diferentes sistemas de uso da terra: pousios de curta e longa duração,
pousios setoriais e cultivos permanentes
ou hidráulicos, a eficiência e importância de cada um deles. Além disso, esse ecótipo tomou duas variantes principais:
o ecótipo “Mediterrâneo” e o ecótipo “Continental ou transalpino”, que misturam implementos rudimentares com diferentes formas de pousios. Quanto aos
ecótipos neotécnicos, ele destaca que foram utilizados a partir do século XVIII
e são assim descritos: horticultura especializada, fazendas leiteiras, cultivo composto
e, o último, relacionado com as culturas agrícolas dos trópicos. O autor
apresenta as formas de relacionamento do camponês com o mundo exterior à sua
propriedade. Descreve os sistemas de zadrugas, da Eslávia meridional no século XIX; formas comunitárias existentes
na Índia e Europa medieval com as corporações, o jajmani; além de outras formas mais modernas de relacionamento de
mercado em redes de trocas, como os mercados secionais.
Na parte final
desse capítulo, Wolf (1976)
discorre sobre a disposição dos excedentes camponeses e os tipos de domínio. Assim, estuda os
mercados e as vinculações do campesinato, além das formas de influência do
mercado com a composição dos preços das mercadorias, bens e serviços e os
fatores de produção: terra e trabalho. Observa essa relação de mercado na Índia
e na Europa e as diferentes formas de domínio sobre os camponeses, como por
exemplo, os tipos: o patrimonial (feudal), de caráter hereditário; o prebendal,
não hereditário, ao contrário,
representa concessão de rendas, uma de suas formas é a concessão pelo Governo
e, o último, o mercantil, a terra vista como propriedade privada. De acordo com o autor, essas três formas de domínio
sobre a terra não se excluem
necessariamente e, na maior parte dos casos existentes, elas aparecem
juntas. Apresenta, para concluir,
algumas experiências denominadas por “domínio administrativo”, reguladas pelo
Estado, como as vivenciadas na União Soviética, com o kolkhoz
(domínio administrativo, cujos
maiores produtos, geralmente cerealíferos, são cultivados coletivamente) e o
sovkhoz (outro domínio administrativo
em que as fazendas são trabalhadas por turmas de lavradores que não tem
qualquer vínculo com a terra); na China Popular, com as comunas (que tentaram também agrupar um grande número
de cultivadores em brigadas de produção e consumo sob os auspícios do Estado);
e, no México, com os ejidos (que
consistiam em lavouras inalienáveis concedidas a famílias específicas).
No terceiro
capítulo, Wolf (1976) discute os aspectos sociais do campesinato atribuindo,
inicialmente, à família sua capacidade como unidade produtiva e sua varias ligações
em termos de envolvimento econômico com outras famílias em termos horizontais
e, em termos verticais, suas ligações com os detentores de poder. Para o autor,
o grupo doméstico no campesinato se divide basicamente em família nuclear ou conjugal, que consiste em homem e mulher casados
e sua prole; e família extensa, que agrupa
em uma única estrutura certo número de famílias nucleares. Este último grupo apresenta variantes conforme a
sociedade de que faz parte. Dentre os tipos de família, Wolf (1976)
destaca que eles guardam particularidades próprias já que existem os membros
permanentes, aqueles que precisam ser alimentados, alojados, vestidos e assistidos
em outras necessidades num período de tempo prolongado, além da alimentação.
Ele afirma ainda que a família extensa cria tensões que não são evidentes na
família nuclear.
Quanto aos
padrões de herança, o grupo doméstico sempre acaba por experimentar tensões.
Por isso, a sucessão é regulada por normais especiais. Basicamente, existem
dois sistemas de herança: 1) envolve a passagem de recursos a um único herdeiro
ou herança sem partilha; e 2) envolve mais de um herdeiro ou sistemas de
herança por partilha. De acordo com o autor, os sistemas de herança por
partilha ou sem partilha podem ser mais diferentes, dependendo de terem ou não
direitos sucessórios outorgados a todos os filhos ou somente aos varões. De
fato, o campesinato se expõe continuamente a uma gama de pressões que se chocam
contra ele e desafiam sua existência. São pressões seletivas que demandam a
possibilidade de estratégias defensivas. Wolf (1976) nos coloca que essas
pressões podem ser: 1) produzidas pelo ambiente; 2) emanadas pelo sistema
social; e 3) emanadas da sociedade global da qual a propriedade camponesa faz
parte. Tais pressões atingem todos os membros do campesinato, mas sempre uns
mais que outros. Uma das estratégias defensivas indicadas pelo autor seria a
seguinte: os grupos mais bem sucedidos a conjugar-se, diante do impacto das
pressões, ajudando os mais problemáticos.
Com base nisso,
ele ainda enfatiza que, em toda parte, os camponeses tendem a entrar em
alianças que se mantem frouxamente, de modo a permitir a sua dispensa num período
de provação severa. Essas alianças são chamadas por ele de “coalizões”, ou seja, uma combinação ou
ligação entre pessoas, facções e Estados, em geral, temporária.
Conforme seu
critério, o autor distingue três tipos de coalizão camponesa:
1. O grau no
qual são formadas coalizões entre pessoas que compartilham muitos interesses
(coalizão multilinear) ou entre pessoas ligadas por um único interesse
(coalizão
unilinear);
2. O número de
pessoas envolvidas na coalizão. Ela por se
diádica quando envolve duas pessoas ou dois grupos de
pessoas, ou poliádica quando envolve muitas pessoas ou grupos de pessoas;
3. O grau no
qual são formadas as coalizões, tanto por pessoas com as mesmas oportunidades
de vida, ocupando a mesma posição social, quanto por pessoas ocupando diferentes
posições na ordem social.
Assim, as coalizões podem envolver camponês com
camponês, as quais são chamadas coalizões
horizontais; ou podem envolver
camponeses e superiores fora do grupo, que são chamadas coalizões verticais.
Sob cada uma dessas condições ou sob todas elas juntas, os camponeses tem
possibilidade de se encontrar de se encontrar em diferentes contextos sociais,
lidando com diferentes indivíduos, engajados em diferentes atividades, estas
por sua vez dirigidas a fins diversos. Para finalizar esse capítulo, Wolf(1976)
discute as coalizões unilineares e as
multilineares, bem como o lugar dessas coalizões e a ordem social envolvente.
Neste sentido, ele ressalta duas características da organização social: 1) a
forte tendência à autonomia das famílias camponesas; 2) a forte tendência a
formar coalizões numa base mais ou menos instável para objetivos a curto prazo. Entretanto, finaliza afirmando: “entrando numa
coalizão, a família não pode perpetuar-se a si própria”.
No quarto
capítulo, Wolf (1976) ressalta o campesinato e a ordem ideológica, destacando
que os camponeses fazem parte de uma ordem social mais vasta e se relacionam
com ela através de suas coalizões, do mesmo modo participam de uma compreensão
simbólica, uma ideologia, que se relaciona com a natureza da experiência humana.
Essa ideologia consiste em atos e ideias cerimoniais e crenças, que preenchem diversões
funções. No campesinato, uma ideologia tem significado moral e as relações entre
as unidades familiares devem ser marcadas por um equilíbrio entre os interesses
das unidades participantes e das coalizões que ligam o campesinato à sociedade
mais ampla. Esse equilíbrio é validado pelo
cerimonial, categoria que gira em torno de um novo casamento e, por ele,
a criação de um novo grupo doméstico.
Quanto à religião
camponesa, seus níveis de tradição não se explicam unicamente através de
seus termos. Ela funciona para sustentar e equilibrar o ecossistema camponês e
a organização social e também constitui
um componente da ordem ideológica mais ampla. É responsiva aos estímulos
que derivam tanto do setor camponês como
da ordem social envolvente, por isso, a religião forja mais um elo que liga o
campesinato a essa ordem. O sagrado camponês penetra no espaço da colheita e da
saúde, tensionando simbologias próprias de caráter ideológico.
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