quarta-feira, 18 de abril de 2012

ARTIGO: “VER, SENTIR E OLHAR O OUTRO”: UMA DISCUSSÃO SOBRE OS SUJEITOS SOCIOCULTURAIS DAS 40 H EM ANGICOS/RN À LUZ DAS TEORIAS EPISTEMOLÓGICAS CONTEMPORÂNEAS

Silvânia Lúcia de Araújo Silva

(Professora do Departamento de Educação da UERN/CAJIM.  Licenciada em Letras e Pedagogia, é Mestre em Literatura e Interculturalidade pela Universidade Estadual da Paraíba e Especialista nas áreas de Língua, Linguagem e Ensino e Tecnologia Educacional pela Universidade Federal da Paraíba. Atualmente é membro da Comissão Permanente de Pesquisa da UERN e Coordenadora do CEFEPI (Curso de Especialização na Formação do Educador em Práticas Interdisciplinares)


RESUMO

Objetivando apresentar algumas encruzilhadas construídas pelas teorias epistemológicas contemporâneas acerca do método a ser trilhado em pesquisa social, que vêm atravessando as práticas de educação, buscamos  neste estudo, refletir sobre  a melhor metodologia a ser desenvolvida com os sujeitos que fizeram parte da primeira experiência de Paulo Freire em Angicos/RN, cujos indivíduos são problematizados acerca de suas identidades culturais, suas histórias e narrativas-pessoais – memórias –, seus saberes.  Esta ênfase justifica nossas escolhas por teóricos como Souza Santos, Morin, Maffesoli e Marioti que, sem desqualificar o rigor do método, propõem em seus estudos o desvelamento de outras situações que acolham momentos possíveis de subjetividade.  Nesta direção, ressaltamos que a  pesquisa qualitativa, hoje, assume particular  destaque entre as ciências humanas e sociais. Dado o seu campo transdisciplinar, ela admite tradições ou paradigmas analíticos que se derivam do positivismo, da fenomenologia, da hermenêutica, do marxismo, da teoria crítica, e do construtivismo, e adota vários métodos de investigação. Com base nessa característica, compreendemos que esse tipo de pesquisa reflete as condições necessárias para o estudo que vamos engendrar a fim de refletir sobre o lugar do outro na pesquisa e no entorno social a que pertence. A observação, a pesquisa bibliográfica e documental, a entrevista, o relato dos sujeitos,  constituem fontes de informação que conduzem o pesquisador à coleta de dados e, consequentemente, à possibilidade de compreender o objeto em análise, ou seja,  suas histórias de vida, suas subjetividades acerca do processo de alfabetização, bem como dos processos de conscientização e politização, ali desenvolvidos. 

Palavras-chave: Sujeitos socioculturais. Teorias Epistemológicas. Pesquisa Social. 

Vivemos um tempo em que não faltam situações ou condições que provocam desconforto ou indignação e, invariavelmente, despertam-nos certo grau de inquietude. De modo geral, é possível que encontremos na literatura que gira em torno de “explicar” o conhecimento científico e buscar suas verdades, profunda dificuldade em construir uma teoria crítica, cujas bases epistemológicas não tenham sido geradas sob a égide do inconformismo e/ou da indignação (SANTOS 2000).

Buscar um “lugar  comum”,  contudo,  nas  teorias  epistêmicas  contemporâneas acerca do saber científico não é algo de fácil aplicação. Isto porque os autores e teóricos atuais, ao esquadrinhar explicações e/ou problematizações para suas pesquisas, precisam sempre acomodá-las nos pensamentos já existentes, seja sob a lógica da  confrontação, seja sob a lógica da criticidade. A verdade é que eles sempre sinalizam uma contraposição do pensamento de outrem, o que nos leva a refletir que estamos volta e meia girando no entorno das explicações sobre o conhecimento científico, mas sem o atingi-lo em sua totalidade micro e macro. 

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Paulo Freire, autor que apresentamos como interlocutor principal do diálogo que estamos construindo em nosso projeto de Doutoramento, já afirmava que “a neutralidade da educação, de que resulta ser ela entendida como um quefazer puro, a serviço da formação de um tipo ideal de ser humano, desencarnado do real, virtuoso e bom, é uma das conotações fundamentais da visão ingênua da educação” (2006, p.28). Seu pensamento, ao ser ressignificado no campo da pesquisa social, como veio mediador para a produção da ciência, conduz-nos à seguinte reflexão: o conhecimento não é neutro, seu desenvolvimento se dá pela busca por um tipo ideal de homem e de sociedade, cujas implicações nos remetem à reflexão da necessidade de compreender o ser humano a partir de sua realidade de mundo, numa concepção vasta e genérica do meio em que vivemos; e qualquer pensamento contrário sobre o conhecimento científico seria uma visão ingênua de sua extensibilidade.

Nessa direção, o trabalho  que apresentamos  objetiva apresentar algumas encruzilhadas construídas pelas teorias epistemológicas contemporâneas acerca do método a ser trilhado em pesquisa social, que vêm atravessando as práticas de educação, e sobre as quais buscamos estudar a fim de  analisar qual a melhor metodologia a ser desenvolvida com os sujeitos que fizeram parte da primeira experiência de Paulo Freire em Angicos/RN, cujos indivíduos constituem o foco de nossa pesquisa em Educação Popular e, hoje, são problematizados acerca de suas identidades culturais, suas histórias e narrativas-pessoais – memórias – seus saberes. 

Na busca pelos aspectos constitutivos desses sujeitos, faz-se necessário recorrer a uma metodologia que conduza a pesquisa às respostas da problemática que colocamos como ponto de partida para nossa análise: Qual tem sido o lugar do outro, aquele que participou da primeira experiência freiriana do método de alfabetização, na conjuntura da sociedade contemporânea?  E mais, apropriando-nos do questionamento que Fiallos (2006) nos faz, continuamos a problematizar: “Que tipo de consciência crítica se desenvolveu nos novos sujeitos históricos [...]?”.  

Com base nessas premissas, nossas reflexões se pautam em dois pontos: por um lado,  historicamente, no campo das ciências  sociais, inúmeros são os limites e impedimentos às práticas investigativas que reconhecem o outro como participante  legítimo da pesquisa; por outro lado, hegemonicamente, os esquemas binários de compreensão e interpretação da realidade social, frutos de uma matriz científica cartesiana de sociedade/conhecimento, dificultam, ou quase sempre interditam, “o lugar do outro” no contexto de uma pesquisa.

No campo político-epistemológico, na produção de conhecimento, caso  o contexto da pesquisa envolva especialmente os setores populares, as minorias, sejam os pobres ou os oprimidos/marginalizados, diz Tavares (2009): o reconhecimento do outro é muito mais complexo e epistemologicamente difícil de  ser  considerado sem preconceito. O autor questiona tal falto porque a supremacia do pensamento científico brasileiro, a nossa intelectualidade,  tem  se fundado a partir da mentalidade europeia – de colonizador  –, que define os sujeitos dos setores populares  como carentes, velhos, pobres, semianalfabetos, iletrados, não somente no campo material, mas também no campo do simbólico.

Na tentativa de tensionar a questão do método da pesquisa a ser desenvolvido para trabalhar com o outro, um sujeito singular – de terceira idade e ex-aluno do método Paulo Freire de Alfabetização  –, construímos, neste estudo, um diálogo com autores como Minayo (1999), que destaca a pesquisa social como sendo não estanque, não estática, positivando-a como histórica, interdisciplinar, caracterizando-se por ultrapassar os limites da ciência; Souza Santos  (1999; 2000; 2003), que nos faz refletir sobre um conhecimento prudente para uma vida decente, destacando que a ciência pós-moderna, ao sencomunizar-se, não despreza o conhecimento que produz tecnologia, mas entende que, tal como o conhecimento deve se traduzir em autoconhecimento, o desenvolvimento tecnológico deve traduzir-se em sabedoria de vida; Maffesoli (1998), que sugere ao pesquisador um novo olhar sobre o mundo, de maneira que seja possível interpretar o mundo contemporâneo a partir de uma “razão sensível”  e  não  usando conceitos puramente representacionais; Mariotti (2000), que ressalta que nosso mundo é a nossa visão de mundo, pois, vivemos no mundo que construímos, a partir de nossas percepções; Morin (1996), que, ao propor a teoria da complexidade, ressalta que  a realidade pode ser compreendida por meio de saberes que se complementam numa teia relacional de acontecimentos e não apenas diante de causas e efeitos; Freire (1997; 2005; 2006; 2009), que nos traz a reflexão sobre mulheres que se permitiram politizar-se a fim de assumir novo perfil social, mulheres de terceira idade que queremos compreender, hoje, na sociedade atual, mas que já se perceberam excluídas no seu coletivo e invadidas no seu individual, quando eram vistas como despolitizadas. Além desses autores, outros também nos indicarão quem é esse sujeito dentro de nossa pesquisa social, que se volta para a Educação Popular.

As teorias epistemológicas contemporâneas: uma breve crítica-reflexiva
 
Hoje, em todo o mundo, propõe-se um instrumento conceptual renovado capaz de traduzir as realidades atuais, que faça surgir novos saberes, sem que, necessariamente, desconsidere saberes outros, saberes anteriores. São estudos e teorias epistemológicas que nos permitem compreender, no movimento dos  acontecimentos científicos, uma busca pela completude – ou será que podemos dizer: sua incompletude? – das coisas, do conhecimento, das descobertas, da própria ciência, sem deixar de visualizar suas complexidades.

Desde meados do século dezenove que se define e, muito mais agora, no início do terceiro milênio, o período denominado como a crise final do paradigma moderno.Por consequência, muitos estudiosos têm buscado explicar o conhecimento científico na contemporaneidade, passando a realizar críticas ao paradigma da modernidade e propondo um quadro teórico e analítico que permita pensar a modernidade fora dos cânones do paradigma dominante nos últimos duzentos anos. Esta disponibilidade tem se efetivado porque esse paradigma não responde às necessidades da  sociedade atual, uma vez que a teoria crítica moderna a concebe como uma totalidade e, como tal, propõe uma alternativa total à sociedade que existe. Essa proposição, diz Souza Santos (2000), assenta-se sobre alguns pressupostos que devem ser criticados, dentre os quais, de modo singular, ele indica-os: a) há um princípio único de transformação social; e b) há um único agente histórico coletivo capaz dessa transformação. São pressupostos, afirma o autor, que se coadunam na inevitabilidade de um futuro socialista gerado pelo desenvolvimento constante das forças produtivas e pelas lutas de classes em que ele se traduz, os quais não se sustentam e, por isso, a teoria crítica moderna está em conflito.

A crise de identidade das ciências no tempo em que vivemos, na perspectiva de Souza Santos (1999), põe em causa a teoria representacional da verdade e a primazia das explicações causais. Ele defende que todo o conhecimento científico é socialmente construído e, portanto, devemos conceber o surgimento de um “paradigma de um conhecimento prudente (um paradigma científico) para uma vida decente (um paradigma social)”, devendo ser não apenas um paradigma científico, mas também um paradigma social.

Distinguindo na transição paradigmática diversas dimensões que evoluem em ritmos desiguais, o autor destaca duas dimensões principais: a epistemológica e a societal. A primeira, a transição epistemológica, afirma ele, ocorre entre o paradigma dominante da ciência moderna e o paradigma emergente de “um conhecimento prudente para uma vida decente” (SANTOS, 2000, p.16); a segunda, a transição societal, por sua vez, ocorre do paradigma dominante  –  patriarcal, capitalista, excludente, autoritário, consumista, individualista – para um conjunto de paradigmas de que, no momento, não conhecemos senão as “vibrações ascendentes” (idem ibidem).

Destarte, em meio à crise anunciada, surge a necessidade de idealizar outra teoria crítica – pós-moderna? – que se quer complexa, mas coerente com a certeza de sua incompletude para responder os problemas atuais. É nessa direção que se “explica” a teoria da complexidade. Nela, há várias teorias outras, que se complementam como nos indica seu próprio conceito, do latim complexus: aquilo que é tecido em conjunto, e, portanto, não paradigmático, não dividido, não linear. A teoria da complexidade nos revela, então, que a realidade pode ser compreendida por meio de saberes que se complementam numa teia relacional de acontecimentos e não apenas diante de causas e efeitos.  Assim, a partir do momento que se compreende a epistemologia da complexidade como um pensamento teórico que faz relação entre a parte e o todo, numa dimensão em que não é apenas a parte que está no todo, mas o todo que está igualmente na parte, “como no holograma em que cada ponto contém a totalidade” (MORIN, 1996, p.14), é possível verificar relações de aproximação entre as inquietações que são corporificadas por Souza Santos,  Morin e parte  de nosso projeto apresentado ao Programa de Pós Graduação em Educação, na linha de pesquisa em Educação Popular.

É neste movimento próprio das reflexões  que  também dialogamos com Maffesoli (1998),  ao ressaltar que em vez de continuarmos pensando segundo um racionalismo puro e duro, em vez de cedermos às sereias do irracionalismo, seria interessante que puséssemos em prática uma “deontologia” que nos conduza a reconhecer em cada situação a ambivalência que a compõe. A noção do autor supracitado de pós-modernidade vem contribuindo, a nosso ver, para a conexão, no pensamento racional cartesiano dominante, de parâmetros humanos, como a instância do onírico, do lúdico e do imaginário criando, neste sentido, a ideia de uma razão sensível.

Pelo exposto, ao afirmar que o descompasso entre a intelligentsia (constituída por acadêmicos, políticos e jornalistas) e a base  da sociedade é, hoje, algo patente, o   6 autor sinaliza o quão vivemos tempos contraditórios e irremediavelmente complexos. Ele sugere ao pesquisador um novo olhar sobre o mundo, de maneira que seja possível interpretar o mundo contemporâneo a partir de uma “razão sensível” e não usando conceitos puramente representacionais. 

[...] a representação foi, em todos os domínios, a palavra mágica da modernidade. [...] ela está na base da organização política, daquilo que se convencionou denominar ideal democrático, e justifica através deste fato todas as delegações de poder. Também a encontramos nos diversos sistemas interpretativos, procedendo por mediações sucessivas e tendo por ambição [...] representar o mundo em sua verdade essencial, universal e incontornável (MAFFESOLI, 1998, pp. 19-20).

Constituindo-se a palavra mágica da modernidade, enquanto exemplo da política e dos sistemas de interpretação, o autor, em função disso, propõe a substituição da representação pela “apresentação das coisas”. 

Bem outra é a apresentação das coisas, que se contenta em deixar ser aquilo que é, e se empenha em fazer sobressair a riqueza, o dinamismo e  a  vitalidade  deste  ‘mundo-aí’. Este  é,  certamente,  imperfeito, mas tem o mérito de ser, e de ser vivido enquanto tal. Assim, a apresentação sublinha que não se pode jamais esvaziar totalmente um fenômeno, isto é, qualquer coisa de empírico, de empiricamente vivido, através de uma simples crítica racional (ibidem, p.20).

Essa apresentação das coisas comporia uma mudança de atitude do pesquisador sobre o objeto observado, e aí, sim, esse “descompasso” de que falamos entraria numa certa “ordem/desordem” e o medo de pensar da  intelligentsia não seria compreendido como contradição, mas como parte preponderante da dialética.

Característica da pós-modernidade, a lógica da conjunção para unicidade é algo que vivemos, embora a intelligentsia, ou seja, os que têm o poder de dizer e fazer, permaneçam dominados pelo pensamento racional moderno. A pós-modernidade não se fundamenta em distinções precisas e simples, diz Maffesoli (1998), mas em uma “complexidade” que integra tudo, inclusive a instância do paradoxal. Deste modo, estaríamos retornando ao mito nietzschiano de Dionísio, momento em que um novo paradigma cultural se encontra em formação, deixando para trás os traços da chamada modernidade e adotando um ponto de vista mais emotivo, condicionado à busca pelo prazer supremo e, realmente, dionisíaco em relação ao mundo.

Apenas a título de ilustração, conforme o autor, cada sociedade, em um dado momento histórico, tem uma figura emblemática forte. Na modernidade, foi Prometeu, o deus do trabalho, da razão, da seriedade. Mas houve uma fadiga, um desgaste, uma saturação pela superexposição. Hoje, ao contrário, assistimos ao retorno de uma outra figura emblemática: Dionísio, que representa a desordem, a festa, e, sobretudo, a transgressão da norma, do mesmo, do igual.

Há que se ressaltar, contudo, que, ao assumirmos a crítica à modernidade e a relevância  do estatuto epistemológico moderno  –  racionalista  –, de maneira alguma, conforme nossa leitura de Maffesoli  (1998) ou de qualquer outro teórico pós-moderno, negamos as contribuições da modernidade ao desenvolvimento evolutivo do homem, ou negamos a necessidade de reafirmarmos valores como a solidariedade, a alteridade, a convivência na diversidade, etc. como absolutos.

A nosso ver, absorver uma razão sensível é algo fundamental, elemento indispensável para a leitura e a interpretação do mundo. Ao mesmo tempo, reconhecemos que negar ingenuamente as contribuições da modernidade seria cair na armadilha de um retorno acrítico e neoconservador à mentalidade pré-moderna. Na realidade, é certo que assumir tal postura revela uma visão míope das principais características da chamada “pós-modernidade”.  O que se pretende negar, portanto, é qualquer relativismo ético e epistemológico, tendo em vista o risco de se desenvolver o mais absoluto niilismo, que na perspectiva nietzschiana, trata-se da negação, do declínio ou recusa, em curso na história humana e especialmente na modernidade ocidental, de crenças e convicções – com seus respectivos valores morais, estéticos ou políticos – que ofereçam um sentido consistente e positivo para a experiência imediata da vida. 

Ao negarmos o relativismo, não negamos o caráter relativo de toda proposta ética e epistemológica, já que nos apropriamos do absoluto de maneira relativa. Mas, passamos a afirmar que todo absoluto carrega um quê de relativo. Assim, usando as palavras de Maffesoli (1998, p.60), concluímos: “Se não nos ativermos unicamente ao simples causalismo racional, perceberemos que há uma pluralidade de razões, e que é da conjunção das mesmas que nasce esse ‘surreal’ que é a existência”.

As 40 horas em Angicos/RN: a primeira experiência de Paulo Freire e os sujeitos socioculturais

Na revitalização dos discursos que se impõem acerca do atual contexto educacional brasileiro, em que se recoloca a necessidade de refletir sobre o “paradigma” da educação popular, evidencia-se sua potencialidade frente à concepção que predomina de educação dominante, a qual, na prática, reforça a exclusão social e a falta de solidariedade humana, condições imprescindíveis para o processo de organização político-social dos seres humanos. A Educação Popular possibilita novos paradigmas e instrumentos de ação político-pedagógicos, capazes de responder a uma realidade de crescente exclusão que vem provocando vários questionamentos acerca da qualidade das nossas democracias e democratizações.

A despeito de qualquer tentativa de simplificação dos críticos ortodoxos da obra freiriana, ao apresentar suas pesquisas, Paulo Freire compreendia que sua abordagem teórica se tratava muito mais de uma  Teoria do Conhecimento  do que de uma metodologia de ensino. Tal fato ressalta o caráter epistemológico de sua teoria e a extensão de uma prática educativa que ultrapassou os espaços fronteiriços do método, fosse ele utilizado para aprender ou para ensinar.

Em sua primeira experiência, efetivamente desenvolvida, descortinou-se a proposta de um intelectual de classe média que, acompanhado de estudantes universitários, buscou fazer com que os participantes – sujeitos  “marginalizados”  do município de Angicos/RN  –  aprendessem a ler e a escrever e, mais, viessem a se politizar em um tempo “mínimo”, que ficou conhecido como 40 horas.

O país vivia, então, um clima de muitas mobilizações em favor das chamadas reformas de base. O campo nordestino fervilhava com as Ligas Camponesas e com os Sindicatos Rurais que lutavam pela reforma agrária. Partidos reformistas conseguiram ampliar os seus espaços no parlamento, e políticos identificados de esquerda conseguiram ser eleitos para altos cargos executivos [...]. De igual modo, a Igreja passou a se envolver mais com as questões sociais, e, no horizonte das relações internacionais, preponderavam  a  ‘guerra fria’, a revolução socialista de Cuba e assim por diante. Nesse contexto, a educação passou a ser alvo de grande interesse por parte dos setores reformistas, com uma particularidade: uma acentuada ênfase na dimensão política da educação (GERMANO, 1997, p.390).

Numa perspectiva bastante discutida nos dias atuais, o Movimento de Educação Popular, como foi chamado, antes de ser conceitualizado como uma proposta pedagógica, nasceu, nutriu-se e se desenvolveu como uma proposta viva de construção do pensamento crítico, de geração de mobilização social, de libertação interna do ser humano e de renovação do caráter opressor da organização social vigente. O novo paradigma assumia o ser humano como um ser pensante, capaz de se transformar e de transformar o seu entorno, à luz da interação crítica e reflexiva; propunha, ainda, uma nova ordem sustentada no princípio do bem comum, da justiça, da equidade, da liberdade, do respeito, da democracia e da solidariedade.

No microcontexto de Angicos/RN, foram mobilizados para fazer parte dessa turma especial, os “subalternos”, homens e mulheres que representavam minorias sociais: domésticas, operários, trabalhadores rurais, pedreiros, serventes, artesãos, lavadeiras, motoristas, carpinteiros, etc..  Esse grupo, quando do momento de levantamento do universo vocabular da população de Angicos/RN, em dezembro de 1962, por um grupo de estudantes, em sua maioria universitários, respondeu majoritariamente que desejava aprender a ler e a escrever “para melhorar de vida”. A ação, de caráter eminentemente político, foi financiada pela Aliança para o Progresso, a fim de que a América Latina progredisse através de homens e mulheres mais politizados e conscientes, bem como pelo órgão local que implantava, administrava, e organizava a reforma educacional no Rio Grande do Norte. Vale ressaltar que 75% da população era analfabeta e a taxa de mortalidade era altíssima.

O cenário dinamizou, portanto, um tipo de educação que passou a ser alvo de grande interesse por parte dos setores reformistas, com uma particularidade singular, afirma Germano (1997, p.390): “uma acentuada ênfase na dimensão política da educação”. O que se posicionava, então, estava para além da alfabetização de milhões de adultos, adolescentes e crianças: dizia  respeito à necessidade de politizar e conscientizar o povo para que ele pudesse participar efetivamente da vida do país e influenciar decisivamente na transformação da sociedade brasileira. Numa linguagem muito discutida, nos dias atuais, o que estava colocado como prioridade era o desenvolvimento de uma educação para a cidadania, para a organização da cultura, para a participação política de enormes contingentes populacionais.

Em busca desse ser social, que se encontra na intersecção do ser humano e do ser cidadão, questionamo-nos: Qual tem sido o lugar do outro, aquele que participou da primeira experiência freiriana do método de alfabetização, na conjuntura da sociedade contemporânea? “Que tipo de consciência crítica se desenvolveu nos novos sujeitos históricos [...]?” (FIALLOS, 2006). Hoje, cerca de cinquenta anos depois da realização da primeira experiência de Paulo Freire e a proposição efetiva de seu método, encontramos seis remanescentes na cidade de Angicos (RN), os quais lembram como tiveram o processo de aprender interrompido pela ditadura, em 1964, que mandava para a cadeia quem insistisse em frequentar a classe, quem se dispunha a entender o mundo através da palavra. São mulheres que, na terceira idade, possuem lembranças, memórias ativadas por uma história engajada em lutas e reflexões sobre a realidade vivida, sobre o mundo que construímos, diz Mariotti (2000), a partir das nossas próprias percepções. 

Ver, olhar e sentir o outro como ele é... Descobrindo o percurso metodológico da
pesquisa em educação popular

Descobrir e reconhecer o melhor percurso metodológico para desenvolver uma pesquisa, constitui atividade de extrema reflexão em busca do destino que se pretende alcançar. A metodologia, afirma Minayo (2000), inclui concepções teóricas de abordagem, ou seja, um conjunto de técnicas que possibilitam a apreensão da realidade e o potencial criativo do pesquisador que, destaca ela, apresenta uma atitude e uma prática de constante busca, que se define como um processo inacabado e permanente. Reconhecendo a relevância de caracterizar uma pesquisa que se quer qualitativa, como principal abordagem para reconhecer o lugar em que se encontra o outro, de terceira idade, na sociedade atual, recorreremos a uma lógica coerente que compreenda sua responsabilidade no processo de investigação.

Buscamos fundamentalmente, neste estudo, tensionar a questão da identidade cultural de sujeitos que fazem suas histórias/narrativas a partir das realidades vividas e historicizadas, em geral, pela oralidade. Se a realidade que percebemos depende da nossa estrutura  –  que é individual  –, existem tantas realidades quantas pessoas percebedoras e, por isso, é preciso que entendamos que, ao simplificar essa realidade, obscurecemos sua compreensão. Daí, a necessidade de identificar um percurso metodológico que nos encaminhe para o encontro do sujeito social, de terceira idade, que acerca de 50 anos participou do movimento de um novo paradigma que assumia o ser humano como um ser pensante, capaz de se transformar e de transformar  o seu entorno, à luz da interação crítica e reflexiva; e que propunha, ainda, uma nova ordem sustentada no princípio do bem comum, da justiça, da equidade, da liberdade, do respeito, da democracia e da solidariedade. Esta ênfase justifica nossas escolhas por teóricos como Souza Santos, Morin, Maffesoli e Marioti que, sem desqualificar o rigor do método, propõem em seus estudos o desvelamento de outras situações que acolham momentos possíveis de subjetividade, já que, a nosso ver, o tempo que vivemos é esse: complexo, onírico, utópico, caótico, desordenado, ambivalente, problemático..., pós-moderno.

A pesquisa qualitativa, hoje, assume particular destaque entre as ciências humanas e sociais. Dado o seu campo transdisciplinar, ela assume tradições ou paradigmas analíticos que se derivam do positivismo, da fenomenologia, da hermenêutica, do marxismo, da teoria crítica, e do construtivismo, e adota vários métodos de investigação. Com base nessa característica, esse tipo de pesquisa reflete as condições necessárias para o estudo que vamos engendrar. A observação, a pesquisa bibliográfica e documental, a entrevista, constituem fontes de informação que conduzem o pesquisador à coleta de dados e, consequentemente, à possibilidade de compreender o objeto em análise. 

A entrevista, a audição, o relato dos sujeitos que permeiam nossa pesquisa nos levarão a entender suas histórias de vida, suas subjetividades acerca do processo de alfabetização, bem como dos processos de conscientização e politização, ali desenvolvidos. Nessa experiência, portanto, compreendemos que será possível refletir sobre o lugar do outro na pesquisa e no entorno social a que pertence.

Não é de hoje que, hipoteticamente, vem se refletindo acerca da perspectiva de que, no campo investigativo, no terreno da pesquisa educacional propriamente dita, encontra-se certa dificuldade de reconhecer o outro, porque, em geral, esse outro não é enxergado. Essa perspectiva corrobora para disseminar o princípio de que o olho só vê aquilo em que se acredita, o que complexifica a questão do encontro com o outro no contexto de uma pesquisa.

Tavares (2009, pp.03-04), ao citar Von Foerster (1996, pp.59-71), nos lembra que ao dizer “ver”, afirma-se que ele não via com os olhos, mas através deles  (...), de modo que esse “ver”  equivale a um  insight, a alcançar a compreensão de algo, utilizando todas as explicações, metáforas, parábolas etc. com que contamos. Ainda, segundo esse autor, ressalta Tavares, devemos compreender o que vemos ou, do contrário, não vemos, pois, a retina está sujeita a um controle central, o que faz com que só vejamos aquilo em que cremos. Assim, questiona-se: Como enxergar o sujeito em quem não cremos? Como enxergar um sujeito que não compreendemos? Para que seja possível responde tais questionamentos, é preciso que lembremos o que já foi discutido em outro momento: a pesquisa sobre/com os setores populares tem que ter como premissa o reconhecimento do outro como sujeito do conhecimento, já que, do contrário, corremos o risco de construir uma pesquisa distante do terreno que se quer   enveredar. Com base nisso, é imprescindível que haja uma coragem, um desprendimento singular, para o desafio da produção de uma pesquisa social que corresponda à realidade de nossa sociedade.

Ao propor a discussão do lugar do outro, um sujeito de terceira idade, suas narrativas e subjetividades no processo de doutoramento e na produção desse trabalho, sentimos a necessidade de compreender nosso papel na pesquisa, enquanto pesquisadores e sujeitos estranhos naquele entorno. Assim, há que se ressaltar que se no domínio do positivismo se mistificou uma ciência fundada numa suposta neutralidade da relação sujeito-objeto, na separação entre ciência e ideologia, e no confronto dessas noções, a teoria epistêmica da complexidade exige outra forma de se pensar/materializar essa relação. É nesse movimento, que firmamos nossa compreensão de que o ato de conhecer a prática social da pesquisa implica uma postura ética e política, o que, inevitavelmente, produz efeitos, ressonâncias diversas que atravessam e complexificam o panorama de nossa pesquisa.

No entorno da contribuição epistemológica das ciências, tentamos construir, gradualmente, um esforço político e ideologizador de combate às simplificações e aos reducionismos nas relações de conhecimento; vamos procurando instituir novas práticas sociais de conhecimento que, centradas na complexidade dos processos humanos, temos apostado na dúvida, na incerteza, na problematização, e na não dicotomia entre sujeito e objeto no processo da pesquisa, na produção de conhecimento em contextos simbólicos e comunicacionais.

Isto posto, privilegiamos as contribuições de Souza Santos (2000), principalmente seu conceito de conhecimento-emancipação, como uma ferramenta potente para a subversão da histórica oposição, complexificação da relação sujeito/objeto. Ele, em sua descrição e crítica do paradigma da modernidade (2000), aponta o conhecimento-regulação e o conhecimento-emancipação como formas de conhecimento que definem o paradigma da ciência moderna. Em suas trajetórias e usos, estes conhecimentos transitam do caos à ordem (regulação) e do colonialismo à solidariedade (a emancipação). E na trajetória de transição epistemológica para um novo paradigma, remetido pelo próprio autor, como já nos referimos em outro momento, de “paradigma emergente”, a forma de conhecimento-emancipação precisa ser reafirmada, visibilizada, subvertendo e ocupando o espaço do conhecimento-regulação. Tal perspectiva implica a aceitação e (re)valorização das possibilidades utópicas presentes.

Há que se ressaltar que o conhecimento-emancipação proposto por Boaventura de Souza Santos pode, a nosso ver, contribuir para a transformação do “objeto da pesquisa” em “sujeito da/na pesquisa”, invertendo um postulado hierarquizador, excludente, para uma formulação pautada na reciprocidade da relação entre os diferentes sujeitos envolvidos da/na pesquisa.

No mover/buscar ver, olhar e sentir o outro como ele se apresenta, individual e socialmente, compreendemos que “o sujeito é a expressão da reflexibilidade da consciência crítica” (SANTOS, 2010, p.61). Não é possível haver projetos sociais progressistas, de mudança, sem a participação de sujeitos críticos que exercitem seu pensamento por meio da confrontação, a qual gera novos sentidos, contribuindo  para modificações nos espaços da subjetividade social dentro dos quais atuam. 

“A ideia de sujeito evoca uma luta social como a de classes ou a de nações em sociedades anteriores, mas com um conteúdo diferente, privado de toda exteriorização, voltado totalmente para si mesmo” (ibidem, p.61). É diante disso que as ideias que simbolicamente imprimem o conceito de sujeito são quase sempre as de resistentes, de combatentes pela liberdade, seja através do pensamento, seja através da linguagem, cujas naturezas social e histórica conduzem esse sujeito à construção de sua subjetividade. O direito de ser sujeito, um sujeito historicizado, de terceira idade, que construiu  em suas escolhas, políticas e conscientes, o direito de combinar sua participação nas atividades  socioeconômicas com o exercício pleno de seus direitos sociais, no cenário do reconhecimento dos outros como sujeitos, é o que nos faz sujeitos culturais e, como tais, é possível, neste movimento, constituir-se e conquistar.

REFERÊNCIAS 

BRITO, Ângela Xavier de; LEONARDOS, Ana Cristina. A identidade das pesquisas qualitativas: construção de um quadro analítico. Cadernos de Pesquisa, n.113, pp.7-38, julho/2001.

FIALLOS, Cecília Amaluisa.    Diálogo a Partir das Perguntas Sugeridas para Consulta do CEAAL. In Educação Popular na América Latina: diálogos e perspectivas / Pedro Pontual, Timothy Ireland (organizadores).  –  Brasília: Ministério da Educação: UNESCO, 2006.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: Em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 2006. 

______. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1997. 

______. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2005. 

______. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2009a. 

______. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do oprimido. 16 edição. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2009b. 

GERMANO, José Willington. As quarenta horas de Angicos. Revista Educação & Sociedade, ano XVIII, nº 59, agosto/97.

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