Texto resenhado por Silvânia Araújo, acadêmica
do curso de Doutorado do Programa de Pós-graduação em Educação da
Universidade Federal da Paraíba.
NISBET, Robert
A. As ideias-unidades da Sociologia. In: Introdução
Crítica à Sociologia Rural. 2 ed. São Paulo: Hucitec, 1986, pp. 41-61.*
Entre Ideias e antíteses, Nisbet (1986) afirma
que a história do pensamento apresenta duas abordagens principais: a primeira,
parte dos próprios pensadores, cujos escritos fornecem a matéria bibliográfica
do pensamento sociológico, ou seja, refere-se meramente à biografia do
pensamento; a segunda, por sua vez, dirige-se não ao homem, mas ao sistema, à
escola ou ao ismo (utilitarismo, idealismo, socialismo). Tais enfoques, destaca
ele, leva-nos a uma terceira abordagem, que não começa com o homem, nem com o
sistema, mas com as ideias, que são os elementos dos sistemas. Sendo, portanto,
elementos constitutivos da história do pensamento, as ideias-unidades fornecem
as diferenças manifestas em seus autores; ideias que persistem através da era
clássica da sociologia, estendendo-se, até o presente (p.43).
Nisbet (1986) localiza
cinco “ideias-unidades” norteadas por critérios seletivos para a
constituição de uma disciplina intelectual, quais sejam: ter generalidade, ter continuidade,
ser distintiva, enfim, ser uma ideia no sentido pleno da palavra (uma perspectiva,
um quadro de referências, uma categoria). Essas ideias-unidades são reputadas
como responsáveis diretas pela privilegiada capacidade de análise e diagnóstico
que a disciplina historicamente demonstra com relação às questões próprias à
sociedade moderna. Segundo o autor, são
elas: “comunidade, autoridade, status,
sagrado e alienação”, cujas noções
foram tomadas de empréstimo do pensamento conservador europeu, que
emergiu como reação à Revolução Industrial e às revoluções democráticas (a
exemplo da Revolução Francesa), correspondendo à imensa dívida que o pensamento
sociológico guarda com relação à tradição conservadora. Estas cinco ideias não
apenas descrevem o contexto societário do que comumente foi designado de “sociedades
pré-modernas”, como também representam as preocupações, o choque e a perplexidade
da análise de extração conservadora face à modernidade.
Neste contexto,
Nisbet (1986) ainda ressalta que a constituição e a emergência da sociologia
são operadas a partir da transfiguração das noções, do diagnóstico e das preocupações
tipicamente conservadoras na linguagem do método científico, com vistas a
objetivos e valores tanto políticos quanto intelectuais, distintos daqueles que
o conservadorismo europeu encarnava. Logo, esta ativa transação com o
pensamento conservador, ou melhor, esta recriação dos temas da tradição
conservadora a partir do exame crítico da razão, dos valores antidogmáticos e
da frequente simpatia aos ideais republicano-democráticos, constituiria o “paradoxo criativo” da sociologia:
a fértil interpenetração de elementos tradicionais e modernos que resulta na
percepção e na elaboração caracteristicamente sociológicas dos problemas da
modernidade.
Cada uma dessas
ideias está associada a um conceito antinômico, do qual ela deriva muito de seu
significado permanente na tradição sociológica. Tal recriação dos temas
conservadores implica a formulação das seguintes ideias antípodas: à ideia de “comunidade” é contraposta à ideia de “sociedade”, ou
seja, de uma extensa aglomeração impessoal de indivíduos habitando um mesmo território
jurídico-político; à noção de “autoridade”,
como força e ordenação superior emanada e chancelada pela tradição e pelos
costumes do sagrado, é contraposta à ideia de “poder” como prerrogativa limitada por estatutos
fixos, impessoais e secularizados; à ideia de “status”, a noção de “classe”, uma ideia mais especializada e coletiva;
à de “sagrado”, contrapõe-se o “secular”,
ou melhor, o utilitário, o profano; e, finalmente, ao diagnóstico conservador
de desestruturação dos grupos humanos e consequente crise, estranhamento e
insegurança dos indivíduos, temos a
“alienação”, que se opõe à possível
perspectiva de “progresso”.
No processo
histórico do surgimento dessas ideias – as quais têm, “como todas as grandes
ideias sobre o homem e a sociedade, seu período de fluxo e refluxo, de escassez
e de abundancia” (p.46) –, Nisbet (1986)
destaca A revolta contra o individualismo,
cuja discussão nos lembra que essas ideias de que ele trata não tiveram papel
relevante na Idade da Razão, que iluminou os séculos XVII e XVIII. Nessa época,
as ideias que sintetizaram a aspiração moral e política foram: indivíduo,
progresso, contrato, natureza, razão. O autor afirma que “dominando todo esse período estava a crença universal do
indivíduo natural – na sua razão, em seu caráter inato e sua estabilidade
auto-suficiente” (p.47). Na verdade, as ideias e os valores do racionalismo individualista
dos séculos XVII e XVIII não desapareceram com a chegada do século XIX, por
isso, segundo ele, o individualismo está longe de descrever a trajetória completa
do pensamento desse século. De fato, o que é mais distinto e fértil, do ponto de
vista intelectual, no pensamento do século XIX, não é o individualismo, mas a
reação ao individualismo, como têm mostrado, por exemplo, essas ideias-unidades
que estão sendo discutidas: comunidade, autoridade, status, sagrado e
alienação. “O racionalismo individualista afirmava-se, então, contra o
corporativismo e a autoridade medievais. No começo do século XIX, deu-se o
contrário: a reação ao tradicionalismo contra a razão analítica, do comunalismo
contra o individualismo e do não-racional contra o puramente racional” (p.47).
Nesta
perspectiva, Nisbet (1986) enfatiza as três grandes ideologias do século XIX e
começo do século XX: Liberalismo, radicalismo e conservadorismo.
O liberalismo se distingue pela devoção ao indivíduo, em especial a seus
direitos políticos, civis e sociais. Derivado e aliado do liberalismo, encontra-se
o radicalismo com uma mentalidade muito diferente: “junto à ideia de poder está
a fé quase sem limites na razão para a configuração de uma nova ordem social”
(p.50). O conservadorismo moderno, por sua vez, “é, pelo menos em sua forma
filosófica, produto da Revolução Industrial e da Revolução Francesa: produto
não intencional, involuntário e odiado pelos protagonistas de ambas, mas, não
obstante, seu produto” (p.51), por isso, pode ser considerado como o primeiro
ataque amplo ao modernismo e a seus elementos políticos, econômicos e
culturais.
Ainda discutindo
os nomes representativos da sociologia moderna, Nisbet (1986) trata da temática
Ideologia e sociologia destacando as ideias pessoais dos maiores
sociólogos da história, consideradas as sementeiras das questões doutrinárias e
conceituais daquele século. Assim, discorre brevemente sobre Le Play, Marx,
Spencer, John Stuart Mill, Comte, Tocqueville, Tönies, Simmel, Weber, Durkheim,
situando suas ideias sociológicas. Ele
registra também que o paradoxo
da sociologia, um “paradoxo criativo”, repousa no fato de que,
embora ela secoloque, por seus objetivos e pelos valores políticos e
científicos que suas principais figuras defendiam, na corrente central do
modernismo, seus conceitos essenciais e suas perspectivas implícitas a situam
muito mais perto do conservadorismo filosófico.
Para finalizar
seu texto, Nisbet (1986, p.58) reflete sobre
As fontes da imaginação
sociológica, enfatizando dois pontos principais: 1) a base moral da sociologia
moderna; 2) a estrutura intuitiva e artística do pensamento, na qual se alcançaram
as ideais centrais da sociologia. As principais ideias nas ciências sociais têm
raízes na aspiração moral, por mais abstratas que sejam ou por mais neutras que
possam parecer aos cientistas e teóricos. De acordo com o autor, todos os
estudiosos que marcaram a história da sociologia usaram de profunda intuição e
intensa força imaginativa, “cada um reagia ao mundo à sua volta como reage
o artista e, também como um artista,
objetivando estados mentais íntimos e apenas parcialmente conscientes” (p.60).
NISBET, Robert
A. Conservadorismo e Sociologia. In:
Introdução Crítica à Sociologia
Rural. 2 ed. São Paulo: Hucitec, 1986, pp. 62-76.
No texto “Conservadorismo e Sociologia”, Nisbet (1986)
destaca, inicialmente, que para o
cientista social contemporâneo ser tachado de conservador, essa característica
ressalta mais uma crítica do que um elogio,
já que “ser
conservador”, segundo ele, é uma pessoa que mantem instituições e pontos
de vista existentes, alguém que se dispõe a ser contrário à mudança e à
inovação. Todavia, para além de qualquer visão global acerca do
conservadorismo, este não pode ser restringido aos termos psicológicos de
atitudes e respostas avaliativas. Isto porque, nos termos contextuais da história,
há também ideias conservadoras – status, coesão, ajustamento, função, norma, ritual,
símbolo – que, na verdade, são partes integrantes da
história intelectual do conservadorismo europeu. Além disso, tais ideias “são
também conceitos integrais no estudo contemporâneo comportamento humano”
(p.63).
Até a geração
passada, o principal interesse dos sociólogos americanos repousava no estudo da
“mudança”, cuja fé encontrava-se aliada à “convicção de que a real unidade da
investigação sociológica era o indivíduo, tido como alguém autossuficiente por
natureza e como o mais solido elemento da realidade social” (idem). Hoje,
continua Nisbet (1986), a principal orientação não é a mudança, mas a “ordem”. Assim,
no lugar das antigas incertezas de antes, é difundida agora uma preocupação com
o fenômeno do deslocamento institucional e da insegurança psicológica. E, nesta
perspectiva, é concebido de modo central na sociologia contemporânea o conceito
de “grupo social”, o qual passa a compor “todo um conjunto de problemas
relacionados com integração e desintegração, segurança e insegurança,
ajustamento e desajustamento” (idem). Na verdade, “os presentes interesses no
grupo social e suas propriedades psicológicas podem ser vistos como manifestações
dos imperativos morais da comunidade que dominam particularmente, na atualidade,
diversas áreas da crença e do desejo” (idem), o que nos leva a compreender que
o sistema de ideias proposto pelo conservadorismo veio a exercer uma profunda
influencia sobre a mente contemporânea.
Nisbet (1986)
ressalta que foram três as perspectivas que se originaram dos escritos dos
conservadores do começo do século XIX na Europa: 1) a perspectiva das massas;
2) a alienação do indivíduo; e 3) a perspectiva do poder. Segundo ele, estas
são as principais heranças intelectuais do conservadorismo. Ao enfatizar tais
heranças, o autor argumenta que “os atuais problemas e hipóteses sobre ordem
social, integração e desintegração grupal e sobre a natureza da personalidade
estão enraizados muito mais profundamente na tradição conservadora do pensamento
moderno europeu do que no sistema liberal-radical do século dezenove, que é
mais comumente tomado como fundamento da
sociologia moderna” (pp.64-65). “O conservadorismo moderno se volta para a
sociedade medieval em busca de inspiração e modelos, contra os quais lança o mundo
moderno”, além disso, “a crítica conservadora ao capitalismo e à centralização política
era do mesmo nível das denúncias contra o individualismo, o secularismo e o igualitarismo”
(p.65). Desta visão crítica da história, afirma Nisbet (1986), “os conservadores
foram levados a formular certas proposições gerais a respeito da natureza da
sociedade e do homem, que divergem radicalmente daquelas visões que os racionalistas
e individualistas haviam enfatizado” (idem). Foram essas as proposições:
1) a
natureza da sociedade, considerando que ela não é um agregado mecânico de
partículas individuais sujeitas a quaisquer arranjos que passem pelas cabeças
dos industriais ou funcionários governamentais;
2) a
primazia da sociedade sobre o indivíduo. “O
homem”, escreve Bonald, “existe apenas dentro da sociedade e
para ela”;
3) a
sociedade não pode ser desmembrada,
mesmo que seja para fins conceituais, em
indivíduos. A unidade irredutível da sociedade é e deve ser em si mesma uma
manifestação da sociedade, uma relação, alguma coisa que seja social;
4) o
principio da interdependência do fenômeno social. A sociedade é orgânica por
natureza e dentro dela sempre há uma delicada inter-relação entre crença, hábito,
associação e instituição;
5) o
principio das necessidades do homem. Não direitos naturais fictícios, mas necessidades
inalteráveis ao homem, suas “vontades”,
como Burke as chamou, são primordiais;
6) o
principio da função. Toda pessoa, todo costume, toda instituição, serve a alguma
necessidade básica da vida humana, ou contribui com alguns serviços
indispensáveis para a existência de outras instituições e costumes.
7) a
ênfase aos pequenos grupos sociais da sociedade. O grupo social, não o indivíduo,
é a unidade irredutível da sociedade; é o microcosmo, societas in parvo;
8) a
realidade da organização social, esta foi uma proposição que os conservadores
foram levados a reconhecer;
9) o valor
indispensável dos elementos sagrados, irracionais e não utilitários da
existência humana. Tentar fundar a sociedade sobre o meramente secular e
sobre motivações meramente individualistas é ruinoso. O homem vive e deve
sempre viver através da prática do ritual, da cerimônia e da adoração;
10) o
principio da hierarquia e do status. Sem hierarquia na sociedade, não pode
haver estabilidade;
11) o principio
da legitimidade da autoridade. A legitimidade da autoridade advém, não de
axiomas de direito e razão, mas de crenças e hábitos que são inerentes às
necessidades, as quais são supridas pela autoridade.
Dificilmente,
completa Nisbet (1986), pode ser dito que o conservadorismo exerceu alguma
influência mais ampla sobre o pensamento do século XIX, já que este foi
considerado o século da grande esperança. Na realidade, para a maioria desse
século, “o conservadorismo, com sua concepção essencialmente trágica da
história, seu medo do indivíduo livre e das massas e sua ênfase na comunidade,
na hierarquia e no sagrado, não parecia mais do que uma manifestação final daquele
passado do qual a Europa estava em toda parte se libertando” (pp.71-72).
Todavia, continua o autor, somente hoje estamos nos dando conta da real
extensão das ideias conservadoras sobre os pensadores e políticos do século
XIX.
Pelo exposto,
Nisbet (1986) ressalta que “a sociologia pode ser considerada como a primeira
ciência social a lidar diretamente com os problemas da desarticulação envolvidos
no aparecimento de uma sociedade de massas”
(p.72). Além disso,
essa ciência, diferentemente das demais, desde o começo, usou largamente
de visões da sociedade fornecidas por homens como Burke, Bonald e Hegel,
reconhecendo o papel preponderante de Comte para o estudo das relações humanas
e de Frédéric Le Play que contribui, anos mais tarde, dando-lhe uma metodologia
e um conjunto de técnicas de investigação empírica. O autor coloca ainda que, entretanto,
é nos trabalhos de Durkheim, no final do século XIX, que se encontra o mais
importante elo de ligação entre o
conservadorismo e o estudo contemporâneo do comportamento humano. Na realidade,
Durkheim divide com Freud uma grande parte da responsabilidade de ter transformado
o pensamento social moderno, cuja visão da história é essencialmente conservadora,
enfatizando “os aspectos desorganizacionais e alienadores do desenvolvimento
europeu moderno e a criação das massas, prostradas inertes ante um estado cada
vez mais onipotente” (p.76).
MANNHEIM, Karl.
O pensamento conservador. In: Introdução Crítica à Sociologia Rural.
2 ed. São Paulo: Hucitec, 1986, pp. 77-131.
Introdução
1. Estilos de pensamento
Mannheim (1986,
p.77) afirma que existem duas maneiras principais de se escrever a história do
pensamento: 1) o
estilo “narrativo”, que
simplesmente expõe a passagem das ideias de pensador a outro e
faz uma narrativa épica da história de seu desenvolvimento; e 2) o estilo
adotado pelo autor neste trabalho que está baseado na sociologia do
conhecimento recentemente desenvolvida. Para ele, no âmago desse método, está o
conceito de “estilo de pensamento”, cujo conceito “parte do principio de que os
indivíduos não criam os padrões de pensamento segundo os quais concebem o mundo,
mas os absorvem de seus grupos” (p.78). O autor nos lembra que, na história do pensamento,
numa sociedade diferenciada e, especialmente, dinâmica, os padrões de pensamento
humano estão continuamente mudando, por isso, ele invoca o conceito de “estilo”
proporcionado pela história da arte que
nos fornece um termo capaz de fazer justiça à natureza especial da história do
pensamento.
De fato, a arte
se desenvolve em “estilos” e é no interior
de cada estilo que há uma mudança gradual de uma fase para outra, o que torna
possível situar até mesmo uma obra de arte desconhecida. É nesse movimento que
Mannheim (1986) argumenta que o pensamento humano se desenvolve em “estilos” e
que há diferentes escolas de pensamento distinguíveis pelos diferentes modos
como utilizam diferentes padrões e categorias do pensamento. De modo geral, o
conceito de “estilo de pensamento” parece já ter sido aceito e, assim, somos,
na maioria dos casos, impedidos de reconhecer a sua existência por dois
motivos: 1) o pensamento é único; e 2) o indivíduo pensa independente e isoladamente
de seus semelhantes. Neste sentido, “as qualidades ímpares do pensamento de
cada indivíduo são supervalorizadas e o significado de seu milieu social para a natureza de seu pensamento é ignorado”
(p.79).
Segundo o autor,
a unidade categorizada mais importante a prevalecer deve ser o estilo de uma
época e é contra esse pano de fundo que a contribuição especial de cada indivíduo
aparece e adquire significado, uma vez que, contrariamente, esse nível intermediário
entre o mais abstrato e o mais concreto é exatamente o que está faltando na
história do pensamento. Mannheim (1986, p.80) afirma, portanto, que “é devido a
essa falta de interesse no nível intermediário que nossas ferramentas para
distinguir estilos de pensamento não estão sendo desenvolvidas”. Utilizando do
método análise da significação, ele
sistematiza os objetivos de seu texto: ver os pensadores de um determinado
período como representantes de diferentes estilos de pensamento; descrever suas
maneiras diversas de enxergar as coisas como
se eles refletissem as perspectivas em mudança de seus grupos; mostrar
tanto a unidade interna de um estilo de pensamento como as leves variações e
modificações que o aparato conceitual do
grupo todo deve sofrer
quando esse mesmo grupo muda sua posição na sociedade.
2. A relação
entre estilos de pensamento e suas circunstâncias sociais
A existência e o
destino grupos estão refletidos aparentemente, ressalta Mannheim (1986), nas
menores mudanças de desenvolvimento de um estilo de pensamento.
3. “Intenções básicas”
O conceito de
intenção básica não se refere à arte, mas expressa a ideia de que diferentes
modos de abordagem do mundo estão na raiz de diferentes modos de pensamento. De
acordo com Mannheim (1986), o sociólogo não pode admitir que as intenções
básicas presentes nos diferentes estilos tenham vindo do nada, pois, elas mesmas
fazem parte do processo de pensamento e que sua história e seu destino estão de
várias formas ligados ao destino dos grupos que devem ser considerados como
seus portadores sociais.
4. Um exemplo concreto: o conservadorismo alemão na
primeira metade do século XIX
Diferentes
estilos de pensamento se desenvolveram de acordo com linhas partidárias, o que
leva o autor a destacar os estilos de pensamento “liberal” e “conservador”,
além do estilo socialista. Essa tendência polarizante foi especialmente marcada
na Alemanha, cujas tendências opostas, extremosas, tornam-se singulares no exemplo
destacado por Mannheim (1986): o romantismo. De acordo com ele, o romantismo é
um fenômeno europeu que surgiu aproximadamente ao mesmo tempo em todos os
países, sob dois propósitos: em parte como reação às circunstâncias comuns e aos
problemas comuns característicos de um mundo capitalista racionalizado e, em parte,
como o resultado de influências ideológicas secundárias.
O autor ainda
discute que a visão romântica
do mundo pretende congelar o tempo, conservar as tradições, as relações
sociais tradicionais, condenando o progresso, o
novo, etc. A recusa do novo é
uma das características secundárias desta visão. O romantismo é predominantemente
conservador, mas possui um potencial crítico, que se dá quando entra em choque
com as ideologias do progresso e as apologias da sociedade capitalista. A visão
iluminista, por sua vez, busca superar as tradições, o passado e fazer a
apologia do novo, do progresso, da tecnologia, tornando-se símbolo da inovação.
A condenação do “ultrapassado”, do antigo, é uma característica secundária
desta visão. O iluminismo é progressista, mas, em sua visão de progresso, não
possui um grande potencial crítico em relação ao desenvolvimento social
contemporâneo, ficando mais ao nível da apologia.
Parte I
O racionalismo moderno e a origem da oposição
conservadora
As diferenças
sociais se refletem não somente em diferentes correntes de pensamento, mas,
também, na diferenciação do clima mental de uma época. O traço mais
característico do pensamento moderno é sua tentativa de atingir uma total racionalização
do mundo. Além disso, o racionalismo moderno, enquanto método de pensamento, tem sua aplicação mais clara e radical nas
ciências exatas modernas. Ele surgiu em oposição a duas principais correntes do
pensamento: a concepção do escolasticismo aristotélico medieval e a filosofia
da natureza da Renascença.
Há que se
ressaltar que a maioria das tentativas de se escrever o desenvolvimento geral
do pensamento moderno tende a dar atenção exclusiva ao crescimento do
racionalismo. Entretanto, o que Mannheim (1986) problematiza em seu texto é o
que aconteceu com todas aquelas relações e atitudes vitais suprimidos pelo aparecimento
de uma racionalização consistente, já que, como de fato acontece na história,
elas submergem e tornam-se latentes.
Segundo o autor, tais relações e atitudes do pensamento vital “foram
assumidos e desenvolvidos, primeiramente, pelas camadas sociais e intelectuais
que permaneceram fora do processo capitalista de racionalização ou pelo menos
tiveram um papel passivo em seu desenvolvimento” (p.94). Em outras palavras,
foi na periferia da nova sociedade, entre a nobreza, o campesinato e a pequena burguesia,
que as antigas tradições continuaram se mantendo vivas. No exemplo usado pelo
autor, o que se tem é que o significado sociológico do romantismo está na sua função
de oponente histórico das tendências intelectuais do Iluminismo, ou melhor, contra
os representantes filosóficos do capitalismo burguês.
De acordo com o
objetivo do romantismo, o que os românticos fizeram não foi reconstruir ou
reviver a Idade Média, a religião, ou o irracional como base e fundamento da
vida; foi algo inteiramente diferente: uma compreensão reflexiva e cognitiva de
tais forças. “Assim sendo, todos esses modos de vida e atitudes para com os
homens, as coisas e o mundo, que durante toda uma época haviam sido na sua
maioria invisíveis, foram mais uma vez
trazidos à superfície” (p.96). Mannheim (1986) analisa como a “oposição de
direita”, politica e social, não apenas se colocou contra a dominação política
e econômica do capitalismo emergente, mas como também se opôs a ele intelectualmente
e reuniu todos os fatos espirituais e intelectuais que estavam em perigo de
desaparecimento, como resultado da vitória do racionalismo burguês, a ponto de
criar uma “contra-lógica”: a “irracionalidade” do pensamento proletário. Na
verdade, afirma o autor: “sua própria dinâmica, a logica de sua própria
posição, facilmente fazem com que esse tipo de racionalismo se transforme num
tipo peculiar de irracionalismo” (p.98).
No entanto,
continua o autor, a consciência revolucionária proletária está diretamente
ligada à tradição conservadora, através da “dialética”. Havia uma necessidade
interna na adoção, por Marx, da ideia de dialética do conservador Hegel, cujo conceito
se pautava na tríade da sequência lógica de “tese, antítese e síntese”, que parecia,
na superfície, extremamente racional. Não é surpreendente, portanto, que a última
geração de socialistas democráticos e de “mentalidade cientifica” fizesse o possível
para eliminar completamente o elemento dialético do marxismo.
Isto posto, Mannheim (1986, p.100) ainda comenta
que “levando-se em consideração tudo isso, somos forçados a admitir que através
de Hegel se efetiva estreita aliança entre o racionalismo e o pensamento
conservador – não obstante o fato desse último ser muito diferente daquela
forma de racionalismo naturalista que considera tudo calculável”. Assim, ele
encerra esta primeira parte de seu texto registrando que “apesar de todas essas
afinidades e similaridades entre o pensamento proletário e o conservador, a
base da mentalidade proletária é estritamente racional e fundamentalmente
relacionada com a tendência positivista da filosofia burguesa” (pp.100-101).
Parte II
O significado do conservadorismo
1. Tradicionalismo e conservadorismo
Mannheim (1986),
neste tópico, inicia seu estudo explicando o que exatamente quer dizer com
“conservadorismo”. Por isso, trata em afirmar que existem dois tipos de conservadorismo:
1) o conservadorismo natural, cujo tipo é mais ou menos universal e que ele vai
chamar, como Max Weber definia, de tradicionalismo; e 2) o conservadorismo
moderno, cujo tipo é produto de circunstâncias históricas e sociais particulares
e que tem suas tradições, forma e estrutura próprias e peculiares, o qual ele vai
chamar simplesmente de conservadorismo.
“Tradicionalismo significa uma
tendência a se apegar a padrões
vegetativos, a velhas formas de vida que podemos considerar como razoavelmente
onipresentes e universais” (p.102); é um
tradicionalismo instintivo, que
pode ser considerado como a reação original a tendências deliberadas de
reforma. A palavra “tradicionalista”, destaca o autor, designa a característica
psicológica formal de toda mente individual. A ação “conservadora”, no entanto,
depende sempre de um conjunto concreto de circunstâncias. Ela envolve mais do
que respostas automáticas de um certo tipo, significa que o indivíduo é guiado
consciente ou inconscientemente por uma forma de pensamento e ação que tem sua
própria história atrás de si, anterior ao contato com o indivíduo. “O conservadorismo
político é, portanto, uma estrutura mental objetiva, em oposição à ‘subjetividade’
do indivíduo isolado. Não é objetiva no sentido de ser eterna e universalmente
válida” (p.103).
Resumindo,
coloca Mannheim (idem), “o conservadorismo não é uma entidade objetiva no
sentido platônico correto ou incorreto da pré-existência das ideias”, embora se
comparado com a experiência hic et nunc
do indivíduo particular, “ele tem uma certa objetividade bastante definida”.
“Dentro de cada configuração estrutural histórica e dinâmica, podemos discernir
uma ‘intenção básica’ característica, que o indivíduo torna sua na medida em
que sua própria experiência passa a ser determinada pela ‘configuração
estrutural’ como tal” (p.105); e o conservadorismo é exatamente essa tal configuração
objetiva, dinâmica e historicamente desenvolvida. Assim, somente quando a
natureza peculiar da objetividade de uma configuração estrutural dinâmica for apreendida
pode-se distinguir um comportamento conservador de um tradicionalista. Pois, o
comportamento tradicionalista é quase que totalmente reativo, já o comportamento
conservador é significativo, em especial, na sua relação com as circunstâncias
que mudam de época para época.
2. O ambiente sociológico do conservadorismo moderno
“O
conservadorismo moderno difere do tradicionalismo primordialmente pelo fato de
ser função de uma situação histórica e sociológica particular. O
tradicionalismo é uma atitude psicológica geral que se expressa em diferentes
indivíduos como uma tendência a se apegarem ao passado e como temor às inovações.
[...] O tradicionalismo é essencialmente uma dessas inclinações ocultas que cada
indivíduo inconscientemente abriga dentro de si mesmo. O conservadorismo, por
outro lado, é consciente e reflexivo desde o princípio, na medida em que surge
como um contra-movimento em oposição consciente ao movimento progressista
altamente organizado, coerente e sistemática” (p.107).
De acordo com
Mannheim (1986), os problemas estruturais comuns a todos os estados modernos
incluem os seguintes: I) a realização da unidade nacional; II) a participação do povo no governo do
país; III) a incorporação do estado na ordem econômica mundial; IV) a solução
das questões sociais. Segundo ele, o conservadorismo moderno surgiu tardiamente
na história e foi se desenvolvendo a partir da combinação de vários fatores
históricos e sociais:
I) a situação
das forças histórico-sociais deve deixar de ser estática e se tornar um
processo dinâmico de mudança orientada;
II) a dinâmica
desse processo deve, cada vez mais, derivar das diferenciações sociais.
Diferentes classes devem surgir como reação aos acontecimentos de forma mais homogênea;
III) as ideias
devem também ser diferenciadas segundo as linhas e as principais tendências do
pensamento, quaisquer que sejam as misturas e sínteses que possam ser aí produzidas;
IV) essa
diferenciação social deve assumir um caráter cada vez mais politico. Em resumo,
Mannheim (1986) afirma que o desenvolvimento e a difusão generalizada do conservadorismo,
diferenciado do mero tradicionalismo, devem-se ao caráter dinâmico do mundo
moderno. Enfim, para ele, o ambiente sociológico do conservadorismo se constrói
quando se entende que o tradicionalismo só pode se tornar conservadorismo numa
sociedade na qual a mudança ocorre através do conflito de classes.
3.
A morfologia do pensamento conservador
Nesta discussão
final, Mannheim (1986) destaca que o conservadorismo pode ser estudado sob dois
pontos de vista: como uma unidade, como o resultado relativamente
auto-suficiente e totalmente desenvolvido de um processo evolutivo, quanto se
pode enfatizar seu aspecto dinâmico e estudar-se o processo genético que deu origem
ao produto final. Dessas abordagens, pode-se chegar ao pensamento conservador e
tentar descobrir o problema chave que domina seu crescimento e torna sua interpretação
possível. Assim, ele afirma que, a priori, é preciso que se compreenda:
a) A
intenção básica por trás do pensamento conservador, o qual, de fato,
é primordialmente nada mais do que o tradicionalismo tornado consciente. O
autor, ao elencar os problemas chave que
permeiam o caráter do conservadorismo, ressalta que “uma das características
mais essenciais desse modo de vida e desse pensamento conservador parece ser a
forma como ele se apega ao imediato, o real, o concreto” (p.111). “Outro
conceito chave para a análise dos diferentes estilos de pensamento e formas de
conhecimento é o da ‘liberdade’. O liberalismo revolucionário entendia por liberdade,
na esfera econômica, a libertação do indivíduo em relação a suas ligações medievais
com o estamento e as corporações” (p.114). Essa liberdade não é, todavia, a habilidade
de agir dessa ou daquela maneira, segundo decisões fundamentalmente arbitrárias;
liberdade seria, pois, a habilidade de se comportar e viver de acordo com o próprio
íntimo, ou seja, sua individualidade que não aceita leis e regulamentos exteriores.
Daí, Mannheim (1986) nos coloca frente ao aspecto qualitativo do pensamento
conservador.
Outro ponto
relevante levantado pelo autor diz respeito ao conflito básico que existe entre
progressismo e conservadorismo.
Aqui ele ressalta
que “o pensamento progressista não encara apenas o
real em termos de suas potencialidades, mas também em termos de um modelo. O
pensamento conservador, por outro lado, tenta encarar o real como produto de
fatores reais, além disso, também tenta compreender o modelo em termos do real”
(p.120). De modo analítico, enfim, o autor nos apresenta várias características
sobre o aspecto morfológico do pensamento conservador (pp.125-126):
- sua natureza
qualitativa;
- sua ênfase no
concreto em contraposição ao abstrato;
- sua aceitação
da realidade presente duradoura comparada com o desejo progressista da mudança;
- a
simultaneidade ilusória que ele atribui aos acontecimentos históricos comparada
com a concepção linear liberal do desenvolvimento histórico;
- sua tentativa
de substituir o indivíduo pela propriedade territorial com base na história;
- sua maior
preferência pelas unidades sociais orgânicas do que pelas unidades aglomeradas,
tais como as “classes”, preferidas pelos seus oponentes.
Todavia,
Mannheim (1986) é claro ao finalizar que esses traços característicos individuais
não pretendem somar um conceito que representasse o “conservadorismo” como tal,
já que os exemplos que expõe tratam-se apenas de ver além deles, de estudar sua
intenção básica, seu desdobramento e, finalmente, compreender sua importância funcional
com relação ao processo social geral.
b) O cerne teórico do pensamento
conservador é o outro ponto
levantado na análise de Mannheim (1986), o qual trata de entender se há algum
problema no centro do conservadorismo. Nesta reflexão, portanto, ele coloca
como problema-chave para o conservadorismo sua oposição ao pensamento do
direito-natural. Isto porque “o pensamento conservador surgiu como uma
corrente independente quando foi forçado a assumir uma oposição consciente ao
pensamento revolucionário burguês, à forma de pensamento do direito-natural.
[...] O conservadorismo não queria apenas pensar ‘alguma coisa diferente’ de
seus oponentes liberais; ele queria
pensá-lo diferentemente e esse foi o impulso que forneceu aquele toque
especial que o transformou em uma nova forma de pensamento” (p.128).
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