O movimento de inclusão tem se espalhado pela sociedade e, por extensão, pela educação brasileira caracterizado por certo “ar de luta” em busca de melhores condições de vida para todos os sujeitos, como garantia do exercício da cidadania. Todavia, dentre as diferentes leituras possíveis atualmente sobre o tema, percebe-se visivelmente um quê de banalização nos discursos políticos, nos programas de lazer, de saúde, nos ambientes empresariais. Para esses, a prática inclusiva tornou-se lugar-comum. Até nas escolas, podemos vislumbrar interpretações que transcendem o caráter inclusivo, uma vez que “alguns professores têm deixado de preocupar-se com os nomes dos alunos, quem são, como vivem, o que querem, que interesses e necessidades têm, para apenas nomeá-los: estes são alunos da inclusão” (SANTOS, 2010, p.52).
Sendo esta uma luta que envolve a todos, ressaltamos que aqui no Brasil a coisa se complica na medida em que as desigualdades sociais são classificadas como uma das maiores do mundo. Para se ter uma ideia precisa desta realidade em nosso país, basta afirmar que a exclusão socioeconômica não é possibilidade, é fato, e exemplo disso é o índice de analfabetismo do povo brasileiro que se aproxima de quase 12%, fração de um total que atinge 190 milhões de habitantes. São milhões de brasileiros excluídos de um direito básico, que lhes é negado: o acesso à educação e ao saber ler e escrever – garantia do exercício ao direito da cidadania.
Vivemos tempos em que o termo cidadania apresenta um conceito de caráter histórico, processual e atemporal. O que nos permite entender que seu significado sofre sentido de variação no tempo e no espaço ao longo de seu desenvolvimento nas sociedades. Tal fato se dá tanto em relação a uma abertura maior ou menor do estatuto de cidadão para sua população, ao grau de participação política de diferentes grupos, quanto aos direitos sociais, à proteção social oferecida pelos Estados aos que dela necessitam (PINSK, e PINSK, 2003, pp.09-10).
Quando falamos de grupos ou movimentos sociais que “lutam” por uma educação que atinja a maioria, ressaltamos o professor Paulo Freire que, ao longo de sua vida, assim como muitos brasileiros, lutou para a construção do sujeito social – o “ser social” –, aquele sujeito que se permite ser construído na intersecção do “ser humano” e do “ser cidadão”, tendo por base o projeto de uma educação intercultural, que respeita as culturas e suas diversidades, que não as subtraem ou fracionam, mas as aglutinam, multiplicam.
O projeto de uma educação intercultural, que contempla todas as formas de inclusão social, conduz-nos à própria história da cidadania, a qual se instaura a partir dos processos de lutas que culminaram, por exemplo, na Declaração dos Direitos Humanos, dos Estados Unidos da América do Norte, e na Revolução Francesa. Ambos os eventos serviram para romper o princípio de legitimidade vigente até então, baseado nos deveres dos súditos, e passaram a estruturá-lo a partir dos direitos do cidadão. A partir daí, todos os tipos de luta foram travados para que se ampliasse o conceito e a prática de cidadania e o mundo ocidental o estendesse para mulheres, crianças, minorias nacionais, étnicas, sexuais, etárias. Assim, é possível afirmar que, na sua concepção mais ampla, cidadania é a expressão concreta do exercício da soberania popular, ou seja, da democracia (PINSKY e PINSKY, 2003, p.10).
A necessidade de compartilhar as questões que envolvem o tema aqui em estudo, levou-nos a construir um texto que se quer reflexivo e pragmático. Baseados nisso, iniciamos nossas reflexões fazendo uma incursão sobre o conceito de identidade cultural, sobre a constituição do sujeito da inclusão, ideias que vamos encontrar amplamente na pedagogia freireana, como reflexo das relações entre educador e educando e na prática da educação inclusiva.
Paulo Freire e uma nova forma de educar: Opressão X Libertação
Na década de 70, após conviver com as condições de exclusão social das populações mais carentes da região Nordeste, cuja grande injustiça girava em torno do analfabetismo, Paulo Freire propôs uma nova forma de alfabetizar, pela qual ao mesmo tempo em que se aprendia a ler e a escrever também se aprendia a “leitura de mundo”, conhecendo a realidade e as condições de opressão vividas para, contra elas, lutar. Sua percepção de educador preocupado com o educando, levou-o a se preocupar com o homem/educando, o que o conduziu para o combate ao analfabetismo e para a extensão das oportunidades de instrução sob a forma de práticas educativas urgentes e necessárias. De cunho extremamente político e conscientizador, o movimento educacional proposto por Freire nasceu em meio a repressões e fortes perseguições.
Opressão e libertação. Estes pólos gêmeos que se impõem à existência social, para Baumann (2005, p.13), se distintos, auxiliam na investigação das ambivalências que impregnam o tema da identidade. E ambos os pólos constituem marcas precípuas da pedagogia freireana na busca de definir uma identidade cultural para o indivíduo social: opressão (analfabetismo, exclusão, subjugação) e libertação (alteridade, cidadania, inclusão). Opressão, do capitalismo abrangente; libertação, através da educação popular.
A efetivação dessa educação como uma das expressões da cultura popular, abrindo espaço para a organização e a conscientização dos trabalhadores enquanto classe social, constitui a meta maior a ser atingida. A escolarização é sentida como necessária, enquanto oportunizadora das condições intelectuais que iriam proporcionar maior esclarecimento dos trabalhadores – cidadãos em função de um engajamento na transformação social (VALE, 2001, p.27).
Através de seu trabalho no Nordeste brasileiro, ao longo do processo alfabetizador, descortinava-se aos poucos o desenvolvimento da consciência de homens e mulheres para se tornarem sujeitos, isto é, cidadãos de direito. “O acesso aos mecanismos da leitura e da escrita oportunizaria a ampliação dos horizontes políticos das classes populares e contribuiria para que elas conquistassem um poder que as fizesse livres” (VALE, 2001, p.27).
Assim, a proposta educativa do professor Paulo Freire, moldada nesses princípios, deveria “ser corajosa, propondo ao povo a reflexão sobre si mesmo, sobre seu tempo, sobre suas responsabilidades, sobre seu papel no novo clima cultural da época de transição” (FREIRE, 1992, p.59). Seu método para alfabetizar adultos representava o canal que viabilizaria a transposição do homem de objeto da história para sujeito ativo da história.
A proposta de alfabetização girava em torno de um método abrangente, pelo qual a palavra ajuda o homem a tornar-se homem e, neste espaço singular, a linguagem passa a ser cultura. É neste sentido que interpretamos a pedagogia de Paulo Freire como uma prática educativa que se manifesta através de “um grito com densidade cultural”, onde a som de destaque, na multidão de vozes que povoam a sociedade, é a voz de uma população “oprimida”. É uma voz que se levanta como crítica e denúncia diante da cultura de massa, imposta pela inflexibilidade de uma sociedade exclusivista. Para os indivíduos oprimidos, o grito é um clamor, é também, ao mesmo tempo, um grito de liberdade, de libertação. “Mais do que isso, é um grito com densidade cultural; uma manifestação que consegue traduzir e denunciar as insuficiências e as contradições específicas em que vivem os povos oprimidos” (ROSSI, 2002. p. 38).
Para Freire (2005, p.59), “os oprimidos, nos vários momentos de sua libertação, precisam reconhecer-se como homens, na sua vocação antológica e histórica de ‘ser mais’”, e neste direito, a reflexão e ação são oponentes, na medida em que não se pretende, erroneamente, dicotomizar o conteúdo da forma histórica de ser do homem. Na busca de uma pedagogia que liberta o homem da opressão, o professor ressaltava:
Ao defendermos um permanente esforço de reflexão dos oprimidos sobre suas condições concretas, não estamos pretendendo um jogo divertido em nível puramente intelectual. Estamos convencidos, pelo contrário, de que a reflexão, se realmente reflexão, conduz à prática (FREIRE, 2005, p.59).
Historicamente, toda luta pela humanização, pela superação da dicotomia opressor- oprimidos, respalda-se pela necessidade de que o homem, neste embate, convença-se que essa luta exige esforço, compromisso, uma vez que a partir do momento em que a aceitam, sua responsabilidade é significativa. É uma luta que exige, portanto, o movimento inclusivo. A inclusão constitui um movimento social, que vem atender e incluir socialmente todos os cidadãos, proporcionando direitos iguais para todos. Na escola, esse processo representa uma mudança na estrutura organizacional, e essas modificações, a nosso ver, surgiram para dar uma melhorada no sistema educacional brasileiro. O tema está em voga e tê-lo no discurso pressupõe quebra de paradigmas e rompimentos de fronteiras.
[Continuar lendo em Mais Informações]