segunda-feira, 11 de julho de 2011

DIÁLOGOS ENTRE A PEDAGOGIA FREIREANA E A EDUCAÇÃO INCLUSIVA: EM BUSCA DO SUJEITO SOCIAL

Silvânia Lúcia de Araújo Silva

(Professora do Departamento de Educação da UERN/CAJIM.  Licenciada em Letras e Pedagogia, é Mestre em Literatura e Interculturalidade pela Universidade Estadual da Paraíba e Especialista nas áreas de Língua, Linguagem e Ensino e Tecnologia Educacional pela Universidade Federal da Paraíba. Atualmente é membro da Comissão Permanente de Pesquisa da UERN e Coordenadora do CEFEPI (Curso de Especialização na Formação do Educador em Práticas Interdisciplinares)


O movimento de inclusão tem se espalhado pela sociedade e, por extensão, pela educação brasileira caracterizado por certo “ar de luta” em busca de melhores condições de vida para todos os sujeitos, como garantia do exercício da cidadania. Todavia, dentre as diferentes leituras possíveis atualmente sobre o tema, percebe-se visivelmente um quê de banalização nos discursos políticos, nos programas de lazer, de saúde, nos ambientes empresariais. Para esses, a prática inclusiva tornou-se lugar-comum. Até nas escolas, podemos vislumbrar interpretações que transcendem o caráter inclusivo, uma vez que “alguns professores têm deixado de preocupar-se com os nomes dos alunos, quem são, como vivem, o que querem, que interesses e necessidades têm, para apenas nomeá-los: estes são alunos da inclusão” (SANTOS, 2010, p.52). 

Sendo esta uma luta que envolve a todos, ressaltamos que aqui no Brasil a coisa se complica na medida em que as desigualdades sociais são classificadas como uma das maiores do mundo. Para se ter uma ideia precisa desta realidade em nosso país, basta afirmar que a exclusão socioeconômica não é possibilidade, é fato, e exemplo disso é o índice de analfabetismo do povo brasileiro que se aproxima de quase 12%, fração de um total que atinge 190 milhões de habitantes. São milhões de brasileiros excluídos de um direito básico, que lhes é negado: o acesso à educação e ao saber ler e escrever – garantia do exercício ao direito da cidadania.

Vivemos tempos em que o termo cidadania apresenta um conceito de caráter histórico, processual e atemporal. O que nos permite entender que seu significado sofre sentido de variação no tempo e no espaço ao longo de seu desenvolvimento nas sociedades. Tal fato se dá tanto em relação a uma abertura maior ou menor do estatuto de cidadão para sua população, ao grau de participação política de diferentes grupos, quanto aos direitos sociais, à proteção social oferecida pelos Estados aos que dela necessitam (PINSK, e PINSK, 2003, pp.09-10).

Quando falamos de grupos ou movimentos sociais que “lutam” por uma educação que atinja a maioria, ressaltamos o professor Paulo Freire que, ao longo de sua vida, assim como muitos brasileiros, lutou para a construção do sujeito social – o “ser social” –, aquele sujeito que se permite ser construído na intersecção do “ser humano” e do “ser cidadão”, tendo por base o projeto de uma educação intercultural, que respeita as culturas e suas diversidades, que não as subtraem ou fracionam, mas as aglutinam, multiplicam.

O projeto de uma educação intercultural, que contempla todas as formas de inclusão social, conduz-nos à própria história da cidadania, a qual se instaura a partir dos processos de lutas que culminaram, por exemplo, na Declaração dos Direitos Humanos, dos Estados Unidos da América do Norte, e na Revolução Francesa. Ambos os eventos serviram para romper o princípio de legitimidade vigente até então, baseado nos deveres dos súditos, e passaram a estruturá-lo a partir dos direitos do cidadão. A partir daí, todos os tipos de luta foram travados para que se ampliasse o conceito e a prática de cidadania e o mundo ocidental o estendesse para mulheres, crianças, minorias nacionais, étnicas, sexuais, etárias. Assim, é possível afirmar que, na sua concepção mais ampla, cidadania é a expressão concreta do exercício da soberania popular, ou seja, da democracia (PINSKY e PINSKY, 2003, p.10).  

A necessidade de compartilhar as questões que envolvem o tema aqui em estudo, levou-nos a construir um texto que se quer reflexivo e pragmático. Baseados nisso, iniciamos nossas reflexões fazendo uma incursão sobre o conceito de identidade cultural, sobre a constituição do sujeito da inclusão, ideias que vamos encontrar amplamente na pedagogia freireana, como reflexo das relações entre educador e educando e na prática da educação inclusiva.   


Paulo Freire e uma nova forma de educar: Opressão X Libertação

Na década de 70, após conviver com as condições de exclusão social das populações mais carentes da região Nordeste, cuja grande injustiça girava em torno do analfabetismo, Paulo Freire propôs uma nova forma de alfabetizar, pela qual ao mesmo tempo em que se aprendia a ler e a escrever também se aprendia a “leitura de mundo”, conhecendo a realidade e as condições de opressão vividas para, contra elas, lutar. Sua percepção de educador preocupado com o educando, levou-o a se preocupar com o homem/educando, o que o conduziu para o combate ao analfabetismo e para a extensão das oportunidades de instrução sob a forma de práticas educativas urgentes e necessárias. De cunho extremamente político e conscientizador, o movimento educacional proposto por Freire nasceu em meio a repressões e fortes perseguições. 

Opressão e libertação. Estes pólos gêmeos que se impõem à existência social, para Baumann (2005, p.13), se distintos, auxiliam na investigação das ambivalências que impregnam o tema da identidade. E ambos os pólos constituem marcas precípuas da pedagogia freireana na busca de definir uma identidade cultural para o indivíduo social: opressão (analfabetismo, exclusão, subjugação) e libertação (alteridade, cidadania, inclusão). Opressão, do capitalismo abrangente; libertação, através da educação popular.

A efetivação dessa educação como uma das expressões da cultura popular, abrindo espaço para a organização e a conscientização dos trabalhadores enquanto classe social, constitui a meta maior a ser atingida. A escolarização é sentida como necessária, enquanto oportunizadora das condições intelectuais que iriam proporcionar maior esclarecimento dos trabalhadores – cidadãos em função de um engajamento na transformação social (VALE, 2001, p.27).

Através de seu trabalho no Nordeste brasileiro, ao longo do processo alfabetizador, descortinava-se aos poucos o desenvolvimento da consciência de homens e mulheres para se tornarem sujeitos, isto é, cidadãos de direito. “O acesso aos mecanismos da leitura e da escrita oportunizaria a ampliação dos horizontes políticos das classes populares e contribuiria para que elas conquistassem um poder que as fizesse livres” (VALE, 2001, p.27).

Assim, a proposta educativa do professor Paulo Freire, moldada nesses princípios, deveria “ser corajosa, propondo ao povo a reflexão sobre si mesmo, sobre seu tempo, sobre suas responsabilidades, sobre seu papel no novo clima cultural da época de transição” (FREIRE, 1992, p.59). Seu método para alfabetizar adultos representava o canal que viabilizaria a transposição do homem de objeto da história para sujeito ativo da história.

A proposta de alfabetização girava em torno de um método abrangente, pelo qual a palavra ajuda o homem a tornar-se homem e, neste espaço singular, a linguagem passa a ser cultura. É neste sentido que interpretamos a pedagogia de Paulo Freire como uma prática educativa que se manifesta através de “um grito com densidade cultural”, onde a som de destaque, na multidão de vozes que povoam a sociedade, é a voz de uma população “oprimida”. É uma voz que se levanta como crítica e denúncia diante da cultura de massa, imposta pela inflexibilidade de uma sociedade exclusivista. Para os indivíduos oprimidos, o grito é um clamor, é também, ao mesmo tempo, um grito de liberdade, de libertação. “Mais do que isso, é um grito com densidade cultural; uma manifestação que consegue traduzir e denunciar as insuficiências e as contradições específicas em que vivem os povos oprimidos” (ROSSI, 2002. p. 38).

Para Freire (2005, p.59), “os oprimidos, nos vários momentos de sua libertação, precisam reconhecer-se como homens, na sua vocação antológica e histórica de ‘ser mais’”, e neste direito, a reflexão e ação são oponentes, na medida em que não se pretende, erroneamente, dicotomizar o conteúdo da forma histórica de ser do homem. Na busca de uma pedagogia que liberta o homem da opressão, o professor ressaltava:

Ao defendermos um permanente esforço de reflexão dos oprimidos sobre suas condições concretas, não estamos pretendendo um jogo divertido em nível puramente intelectual. Estamos convencidos, pelo contrário, de que a reflexão, se realmente reflexão, conduz à prática (FREIRE, 2005, p.59).

Historicamente, toda luta pela humanização, pela superação da dicotomia opressor- oprimidos, respalda-se pela necessidade de que o homem, neste embate, convença-se que essa luta exige esforço, compromisso, uma vez que a partir do momento em que a aceitam, sua responsabilidade é significativa. É uma luta que exige, portanto, o movimento inclusivo. A inclusão constitui um movimento social, que vem atender e incluir socialmente todos os cidadãos, proporcionando direitos iguais para todos. Na escola, esse processo representa uma mudança na estrutura organizacional, e essas modificações, a nosso ver, surgiram para dar uma melhorada no sistema educacional brasileiro. O tema está em voga e tê-lo no discurso pressupõe quebra de paradigmas e rompimentos de fronteiras.
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Educação inclusiva: rompendo paradigmas

O conceito de inclusão ganhou força e expandiu-se por todo o mundo na década de 90. Contudo, nas duas últimas décadas, esse movimento tem provocado muitas discussões não só no campo da educação especial como também em outros segmentos sociais. Além disso, tem contribuído para que a sociedade, de modo geral, assista as pessoas com deficiência respeitando suas diferenças físicas e/ou psicológicas (STAINBACK & STAINBACK, 1999).

Neste sentido, compreendemos que a inclusão apresenta-se com um desafio que vai desde sua concepção conceitual até suas implicações legais e éticas. Sob essa ótica, iniciamos esse tópico direcionando nossas discussões para a definição o termo inclusão, lembrando que, para tal, é preciso caracterizá-la e contextualizá-la à educação especial.

Até a Lei de Diretrizes e Bases 9.394/96 (LDBEN), a educação especial era dirigida àqueles alunos que apresentavam déficits físicos, psíquicos ou sensoriais. Baseava-se na classificação dos alunos em função do déficit e em seu enquadramento nas modalidades de escolarização correspondentes. Tal concepção da educação especial apresentava em consequência a segregação do aluno em função de seus déficits. Hoje, a LDBEN em seu art. 58 define que educação especial é [...] “a modalidade da educação escolar oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para educandos portadores de necessidades especiais” (BRASIL, 1996).

A educação especial, portanto, insere-se nos diferentes níveis da educação escolar: Educação Básica – abrangendo educação infantil, educação fundamental e ensino médio – e Educação Superior, bem como na interação com as demais modalidades da educação escolar, como a educação de jovens e adultos, a educação profissional e a educação indígena.

Tendo por referência a educação especial, Alves (2006, p.10) destaca que a educação inclusiva é a implementação de uma pedagogia capaz de educar com sucesso todos os alunos, mesmo aqueles comprometidos, uma vez que, a priori, seu objetivo consiste em oferecer às pessoas com necessidades especiais as mesmas condições e oportunidades sociais, educacionais e profissionais acessíveis às outras pessoas, respeitando-se as características específicas de cada um.

Para Stainback & Stainback (1999, p. 178), por sua vez, inclusão significa o “processo de criar um todo, de juntar todas as crianças e fazer com que todas aprendam juntas”. Acrescentam ainda que a “inclusão significa ajudar a todas as pessoas (crianças e adultos) a reconhecer e apreciar os dotes únicos que cada indivíduo traz para uma situação ou para comunidade”. Para os autores, a educação inclusiva se realiza com a participação de todos, promovendo o desenvolvimento dos sujeitos envolvidos no processo, entre eles, diretores, professores, família, funcionários e comunidade.

Mantoan (2008), uma das maiores estudiosas do assunto em nosso país, vem de encontro com o pensamento supracitado quando menciona que a inclusão implica mudanças de perspectiva educacional. Destarte, entendemos que a educação inclusiva deve ser entendida como uma responsabilidade coletiva da comunidade escolar, onde todos são responsáveis pelo sucesso ou fracasso escolar de cada aluno. O corpo docente – e não cada professor individualmente – deverá partilhar à responsabilidade do ensino ministrado a pessoa com necessidades educativas especiais.

Marques (2009, p.151) ressalta que “o paradigma da inclusão é o maior representante da valorização do homem na sua diversidade, rompendo com o ciclo vicioso de uma sociedade dominante excludente”. Uma sociedade inclusiva, assim, vai além de garantir apenas espaços adequados para todos. Ela fortalece as atitudes de aceitação das diferenças individuais e de valorização de diversidade humana e enfatiza a importância do pertencer, da convivência, da cooperação, da contribuição que todas as pessoas podem dar para construírem vidas comunitárias mais justas, mais saudáveis e mais satisfatórias.

É sob esse prisma que ressaltamos que uma escola inclusiva contribui para o rompimento do ciclo da exclusão, permite a permanência das pessoas nas suas comunidades, melhora a qualidade de ensino para todos, vence a discriminação e favorece o crescimento da inclusão, permitindo acesso, permanência, qualidade e equidade.

Ainda enfatizando o discurso de Mantoan (2008), destacamos que a escola tem que ser reflexo da vida. Todos ganham convivendo com a diferença. Se os alunos não passam por isso na infância, na maturidade terão muita dificuldade de vencer os preconceitos.

A verdadeira inclusão requer dos ambientes sócio-educacionais, em especial as escolas, a reorganização dos espaços físicos, do currículo, do projeto pedagógico, a fim de atender às necessidades dos alunos com deficiência, como também requer profissionais especializados, capazes de se adequarem às referidas necessidades, que são impostas por salas que se pretendem inclusivas. Reconhecemos, contudo, que o sistema educacional público do Brasil ainda é muito falho e as condições de ensino oferecidas a muitos professores são precárias.


A identidade do sujeito da inclusão: da cultura à educação

A ideia de sujeito que queremos empreender nesta discussão está fortemente inspirada numa representação dialética de homem, o que nos possibilita uma nova forma de relações e um novo modo de compreender o mundo. Estamos em busca do conceito de um sujeito ativo, que reconhece sua capacidade de ação consciente como momento de seus processos atuais de subjetivação, não significando, todavia, que estes se ajustem a um exercício da razão, pois, as construções da consciência são produções de sentido e não construções racionais.

Nossa abordagem, neste sentido, assume significado dialógico entre as pedagogias freireanas e o compromisso da educação inclusiva, a fim de caracterizar, sem estigmas, o sujeito social, um sujeito que anda na contramão da exclusão e que supera o indivíduo excluído, o indivíduo que perde sua identidade e seu sentimento de “pertencimento”, fundamental a qualquer ser humano.

A identidade cultural do indivíduo, neste sentido, controi-se com base na sua escolha de vivenciar o “pertencimento”, pois, segundo Baumann, ao citar Jean Paul Sartre, não basta nascer num lugar ou fazer parte de um determinado grupo social para ter uma identidade, é preciso também neles viver e conviver, respectivamente (BAUMANN, 2005, pp.55-56).

Sob essa perspectiva, para Baumann (2005, pp.17-18), a ideia de ter um pertencimento não vai ocorrer às pessoas enquanto o ‘pertencimento’ continuar sendo o seu destino, uma condição sem alternativa, cômoda e aceitável. Faz-se necessário para a construção da identidade, vivenciar o pertencimento, não de forma passiva, mas de forma que se recrie a realidade em função de uma realidade melhor, possível, que ultrapasse a narrativa de ficção.
 
A idéia de ‘identidade’ nasceu da crise do pertencimento e do esforço que esta desencadeou no sentido de transpor a brecha entre o ‘deve’ e o ‘é’ e erguer a realidade ao nível dos padrões estabelecidos pela idéia – recriar a realidade à semelhança da ideia (BAUMANN, 2005, p.18).

Segundo o autor supracitado, em nossa época “líquido-moderna”, o mundo que nos rodeia está dividido em fragmentos mal coordenados, enquanto nossas existências individuais são fatiadas sucessivamente de episódios sutilmente conectados e grosseiramente desprovidos de sentimentos bons. A cada dia, o homem se distancia mais do outro e, nesta mesma medida, afasta-se de si mesmo e se esquece de quem é ou o que representa (2005, pp.18-19).

Quando se fala em identidade, recordamos o discurso pós-moderno de uma identidade de caráter cultural, uma identidade movida pelo não fetichismo ou fixidez teorizada por Hall e Baumann. Este último, por exemplo, coerentemente nos lembra que “uma identidade coesa, firmemente fixada e solidamente construída seria um fardo, uma repressão, uma limitação da liberdade de escolha” (BAUMANN, 2005, p.60) do indivíduo, seria uma identidade marcada pela não socialização com outras histórias, outras vidas, outras identidades.

O sistema vigente – Capitalista – não abre mão desse sujeito submisso, acrítico, fixo. Todavia, é contra ele que os autores supracitados refletem. Segundo eles, não há mais espaço, na sociedade pós-moderna para esse tipo de sujeito. É a favor desse tipo de sujeito, por ele, que uma educação voltada para a prática da liberdade, que nega a opressão, precisa ser divulgada a fim de ajudá-lo a tornar-se homem, isto é, sujeito de todo o seu processo histórico.

Na objetivação transparece, pois, a responsabilidade histórica do sujeito: ao reproduzi-la criticamente, o homem se reconhece como sujeito que elabora o mundo; nele, no mundo, efetua-se a necessária mediação do autorreconhecimento que o personaliza e o conscientiza como autor de sua própria história (FREIRE, 2005, p.17).

Na medida em que o homem se percebe sujeito de sua própria história, sua identidade adquire nova conotação: ele passa a ter uma identidade em permanente construção, uma identidade cultural, produzida histórica e socialmente. Nesta construção identitária, o homem se inclui, socializa-se. Ele se torna o sujeito da inclusão em uma sociedade que guarda em todos os seus elementos constitutivos, de um lado, a complexidade gerada pelo processo de globalização e da convivência e, de outro, uma pluralidade constituída de sujeitos individuais e singulares em sua forma de ser e estar socialmente, pois, não está no indivíduo a explicação de sua relação com o outro, mas está nas relações sociais a explicação de seus modos de ser, de agir, de pensar e de relacionar-se (SANTOS, 2010).

Ao desenvolver e conceituar as relações entre educador e educando em sua pedagogia, Paulo Freire (2009b, p.47) nos fala sobre a importância, para a aprendizagem do educando, de ele assumir-se e reconhecer-se como sujeito:

[...] o educando precisa de se assumir como tal, mas assumir-se como educando significa reconhecer-se como sujeito que é capaz de conhecer e que quer conhecer em relação com outro sujeito igualmente capaz de conhecer, o educador e, entre os dois, possibilitando a tarefa de ambos, o objeto do conhecimento... Mais do que ser educando por causa de uma razão qualquer, o educando precisa tornar-se educando assumindo-se como sujeito cognoscente e não como incidência do discurso do educador.

Não há como negar que a relação entre o sujeito e sua realidade social é contraditória por natureza, e é nessa contradição que se encontra a possibilidade de desenvolvimento de ambos os espaços, o individual e o social. Nesta perspectiva, Santos (2010) nos indica que é na intersecção destes espaços – individual e social – que se situa a criatividade, uma vez que os espaços de transformação e desenvolvimento somente se tornam realidade concreta quando a contradição entre o individual e o social se faz presente. Há de se ressaltar que este individual é reconhecido não como sujeito “sujeitado”, mas como um sujeito que de forma permanente se debate entre as formas de “sujeição” social e suas opções individuais. 

Segundo Santos (2010, p.61), o sujeito é a expressão da reflexibilidade da consciência crítica. Para a autora, não pode haver projetos sociais progressistas, de mudança, sem a participação de sujeitos críticos que exercitem seu pensamento por meio da confrontação, a qual gera novos sentidos, contribuindo para modificações nos espaços da subjetividade social dentro dos quais atuam. “A ideia de sujeito evoca uma luta social como a de classes ou a de nações em sociedades anteriores, mas com um conteúdo diferente, privado de toda exteriorização, voltado totalmente para si mesmo”. É diante disso que ideias que simbolicamente imprimem o conceito de sujeito são quase sempre as de resistentes, de combatentes pela liberdade.

O sujeito não é apenas aquele que se diz “eu”, mas aquele que tem a consciência de seu direito de dizer “eu”, o que faz a história social seja dominada pela reivindicação de direitos: direitos cívicos, direitos sociais, direitos culturais, direito a ser diferente, direito a ser respeitado, cujo reconhecimento se reconhece hoje como o campo mais delicado do mundo que vivemos (SANTOS, 2010, p.62).

A nosso ver, o direito de ser sujeito é o direito que cada um tem de combinar sua participação nas atividades socioeconômicas com o exercício pleno de seus direitos culturais, no cenário do reconhecimento dos outros como sujeitos. Somos, portanto, sujeitos culturais.

Neste sentido, sendo parte constitutiva da integralidade do sujeito cultural, a “educação” se coloca como possibilidade significativa da construção do mesmo. Neste estudo, levamos em consideração a educação que tem como suporte “a leitura e a escrita”, o processo de alfabetização – a aquisição da linguagem. Para Oliveira (2000), todo e qualquer traço cultural manifestado por uma determinada sociedade dentro da civilização foi criado, transmitido e aperfeiçoado pela “linguagem”.

A linguagem é, pois, a origem e o meio da criação da cultura e da própria civilização. Se ela não tivesse surgido às custas da atividade cerebral, o homem seria, até hoje, mais um animal qualquer. A linguagem, neste sentido, humanizou o homem, através do meio, dos estímulos ambientais, das aprendizagem exercitadas...

No mundo informatizado em que vivemos, ler e escrever são atividades essenciais e se constituem aprendizagens exercitadas. Nossa sociedade é “grafocêntrica”: todas as obrigações sociais, interações, atividades profissionais, acadêmicas e tecnológicas giram em torno da língua escrita. O domínio das atividades de leitura e escrita é requisito indispensável à sobrevivência humana, uma vez que a leitura permite o compartilhamento e conhecimento das culturas e experiências novas, e a escrita, por sua vez, corrobora com o registro dessas experiências.

O ato de ler e escrever valoriza as pessoas. Leitura e escrita são exigências fundamentais no mercado de trabalho. Elas são determinantes para a construção da “identidade cultural” do indivíduo. Para comprovar isso, basta observarmos os anúncios de empregos veiculados pela mídia. Em geral, exige-se certo nível de escolaridade e, às vezes, chega-se a exigir competência na leitura, bem como fluência verbal com expressiva habilidade para tomar notas de recados em tempos limites.

Ao ler um texto, comunicamo-nos com o autor que o escreveu; ao escrever, comunicamo-nos com quem vai ler nosso texto. Em ambos os casos, há sempre uma situação comunicativa. Comunicamo-nos por meio da leitura e da escrita, porque elas são formas de manifestações da linguagem humana.

A construção de uma experiência por meio da linguagem e da participação e sua articulação com um pensamento próprio é um dos processos que definem o ser sujeito, um sujeito de pensamento e de linguagem, processo pelo qual se compromete em suas relações com os outros dentro dos espaços sociais em que atua. Paulo Freire (2009a), ao ressaltar o tipo de alfabetização que trabalhava, seu pensamento recaía sobre uma alfabetização direta e realmente ligada à democratização da cultura, que fosse uma introdução a esta democratização.

[...] uma alfabetização que, por isso mesmo, tivesse no homem, não esse paciente do processo, cuja virtude única é ter mesmo paciência para suportar o abismo entre sua experiência existencial e o conteúdo que lhe oferecem para a sua aprendizagem, mas o seu sujeito (FREIRE, 2009a, p.112).

O domínio das práticas de leitura e escrita é, na sociedade pós-moderna, condição fundamental para que o homem ocupe sua posição normal no mundo: não apenas de estar nele, mas com ele, qual seja: “a de travar relações permanentes com este mundo, de que decorre pelos atos de criação e recriação, o acrescentamento que ele faz ao mundo natural, que não fez, representado na realidade cultural” (FREIRE, 2009, p.112). Pois, é justamente nestas relações com a/na realidade que o homem trava uma relação específica expressada pela linguagem: a de sujeito para objeto; uma relação de que resulta o conhecimento. Todavia, esta relação, que fique bem claro, é realizada pelo homem, e isso independe dele ser ou não alfabetizado, é preciso apenas que ele tenha uma “consciência critica”. 

O sujeito é, pois, o indivíduo comprometido de forma permanente em uma prática social complexa que o transcende e, diante disso, tem de organizar sua expressão pessoal, o que implica a construção de opções pelas quais mantém seu desenvolvimento e seus espaços pessoais dentro do contexto de suas práticas.

É no cenário pós-moderno, que caracteriza uma identidade cultural não fragmentada, mas diversificada, ou como muitos podem considerar, é no cenário globalizado, que se situa o sujeito da inclusão, aquele que assume sua condição de sujeito, historicamente situado, um sujeito responsável pelos caminhos que escolhe para viver.

Assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar. Assumir-se como sujeito, porque capaz de reconhecer-se como objeto (FREIRE, 1997, p.46).

No cerne da discussão que envolve cultura e educação, há de se ressaltar que o sujeito da inclusão transita entre culturas e uma nova forma de educação: a que liberta, que não marginaliza, não exclui.

Voltemos, todavia, aos movimentos sociais... Na contramão do capitalismo individualista, eles continuam lutando por melhores condições de vida para todos, por meio de diferentes ações, que sinalizam práticas sociais e configuram-se em ações humanas concretas pela igualdade e justiça social. Contudo, ao discutir a inclusão de todas as pessoas nos diferentes espaços sociais pelos quais transitamos, faz-se relevante entendermos “que quando se condena a anormalidade, o que está em jogo é a apologia do normal, que identifica esse mecanismo como um procedimento típico da modernidade, cuja prática social está fundada na normatização e no controle disciplinar” (SANTOS, 2010, p.76).

Ainda com base na autora, ao pensarmos nas relações e em como elas ocorrem nos diferentes espaços escolares, precisamos ter em mente as dificuldades que enfrentamos no trabalho educativo derivadas de problemática que norteiam a própria escola, bem como outros espaços sociais não institucionais, como na família e na convivência comunitária. É preciso, na verdade, que cuidemos das relações existentes entre os diferentes segmentos da escola e fora dela, mediante abertura de espaços de diálogo entre todos para que cada um possa crescer em sua singularidade como sujeito (SANTOS, 2010). Através dessas relações, é possível transformar as ações humanas em uma nova prática baseada no respeito, tendo o diálogo como prioridade:

A dialogicidade verdadeira, em que os sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença, sobretudo no respeito a elas, é a forma de estar sendo coerentemente exigida por seres que, inacabados, assumindo-se como tais, se tornam radicalmente éticos (FREIRE, 1997, p.67).

Destarte, queremos lembrar que estamos buscando, na realidade, é transformar a relação sujeito/objeto das práticas educativas em relação sujeito/sujeito, o sujeito da inclusão, que nasce das relações, das interações. Mesmo aparentemente fácil essa busca, ressaltamos que a mesma pressupõe situações conflitantes: os valores do capitalismo presentes em nossa sociedade nos tornam pessoas que se relacionam com objetos, mais especificamente, objetos produtivos (lógica do mercado). Se eu produzo, sou incluído, se não produzo – ou não tenho oportunidade para tal –, sou excluído. É a eterna “lei da selva”, fundamento dos princípios da globalização, em que o que importa não é o sujeito, mas o que ele representa na cadeia da economia.

Se pensarmos no tipo de educação que está sendo desenvolvido nas universidades e escolas particulares de todo o nosso país, reconhecemos o quão são instituições reprodutoras de relações pré-fixadas, o que as torna verdadeiras indústrias educacionais seletivas. Não é, porém, essa relação educacional que possibilita que sujeitos sejam incluídos. A prática inclusiva sugere um novo olhar para a educação. Através dela, podemos encontrar formas de inclusão de todos os sujeitos, de modo que eles possam ser independentes, criativos, solidários, preocupados em construir com outros e não para os outros, novas formas de relação social (SANTOS, 2010).  

Hoje, enquanto professores que somos, devemos lutar pela equidade de oportunidades, de maneira tal que todos, independentes de suas diferenças, tenham acesso a serviços, informações e documentação, e possam ser considerados sujeitos da inclusão. O importante não é a patologia, ou a visibilidade da diferença, mas a acessibilidade aos espaços e à informação, no tempo possível a todos e dos recursos disponíveis.


O desafio de uma conclusão em fase de construção

“A palavra só tem sentido se nos ajudar a ver o mundo melhor” (SANTOS, 2010, p.81); o mundo, por sua vez, vem passando por grandes mudanças na forma como a sociedade e a educação entendem e lidam com a diversidade humana; dentro desta diversidade, há de destacar a relação dicotômica opressor-oprimido. No espaço fronteiriço dessas relações, somente quando o homem se conscientizar que os oprimidos ao se descobrirem hospedeiros do opressor, eles poderão contribuir para a sua libertação.

Conscientização, esta é a palavra que une e separa os homens. A consciência da opressão por parte do oprimido põe em xeque o status quo até então considerado legítimo e que o aprisionava. A consciência é, neste sentido, passaporte de superação, de mudança. Essa consciência, que critica, questiona, conforme palavras de Freire (2009b, p.113) “é a representação das coisas e dos fatos como se dão na existência empírica. Nas suas correlações causais e circunstanciais. A consciência ingênua (pelo contrário) se crê superior aos fatos, dominando-os de fora e, por isso, se julga livre para entendê-los conforme melhor lhes agradar”.

Pela consciência crítica, portanto, temos a convicção de que a inclusão de sujeitos não é um modismo, constitutivo de uma propaganda midiática, mas fruto de grandes movimentos e lutas sociais, que se situam no legado dos direitos da pessoa humana e em valores de justiça social, respeito ao outro – pressuposto do conceito de alteridade –, cooperação e equiparação de oportunidades para todos.

Como educadores críticos, nosso compromisso deve estar em fazer com que as relações entre todos sejam cada vez mais humanas, que se aglutinem na importância da convivência que junta e não que segrega, de saber viver a diferença, de respeitar o outro tal qual como ele se apresenta, num desejo coletivo de possibilitar transformações que nos conduzam à criação da tão sonhada sociedade que queremos, e pela qual lutamos.

Como educadores compromissados, nossa crítica deve se respaldar numa luta sem tréguas contra toda forma de opressão, de prisão, a fim de que os sujeitos da inclusão tenham garantido seu acesso aos diferentes espaços sociais e para que sociedades organizadas democraticamente tornem realidade o direito de todos estarem juntos. Essa é uma luta que nunca terá fim, é uma luta que se faz histórica por ser processual, atemporal, como assim o é o nosso viver e a construção de cada indivíduo como sujeito de sua história, que é também a história de todos e de todas.

Nessa aglutinação de relações, o diálogo se impõe como o caminho pelo qual os homens ganham significação como homens-sujeitos. É uma exigência existencial, é o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado. 


REFÊRENCIAS


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